Jesus
Cristo nunca esteve tão próximo do altar dos homens quanto agora. Na
terça-feira 18 uma respeitada historiadora da Universidade de Harvard, Karen L.
King, especialista em cristianismo antigo, apresentou em um congresso no
Vaticano, sede do catolicismo mundial, aquele que seria o texto mais antigo a
mencionar que o filho de Deus teve uma esposa. Chamado de Evangelho da Esposa
de Jesus, um fragmento de papiro do século IV escrito em copta – um idioma
egípcio – traz um diálogo entre Cristo e seus discípulos no qual se lê: “Jesus
disse a eles: ‘Minha esposa…’. Outros textos apócrifos (aqueles não legitimados
pela Igreja Católica) sobre o cristianismo, como o evangelho de Filipe, do
século III, já davam a entender que havia uma relação conjugal entre Jesus e
Maria Madalena. Em nenhum deles, porém, Cristo fala em primeira pessoa sobre a
sua consorte, como ocorre no Evangelho da Esposa de Jesus, que mede oito
centímetros de comprimento por quatro de altura.
No
documento nota-se, ainda, um diálogo de Cristo sobre o seu discipulado e o
papel de sua esposa entre os homens que o seguiam (leia no alto da página). Na
primeira linha do papiro, lê-se “Não (para) mim. Minha mãe me deu vi(da…)” e,
na terceira, “negar. Maria é digna de… (ou Maria não é digna de…)”. Como a
referência à mãe de Jesus é feita na primeira sentença, o arqueólogo Rodrigo
Pereira da Silva, professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo
(Unasp), afirma que é mais provável que a Maria mencionada no texto seja Maria
Madalena e não Maria mãe de Jesus. Silva, que fez pós-doutorado em arqueologia
na norte-americana Andrews University, concorda, porém, com a professora Karen,
de Harvard. Para ela, o papiro não é prova de que Jesus se casou.
O
documento, segundo ela, seria parte de um livro escrito no século II, ou seja,
uma fonte muito tardia em relação aos dias de Cristo na Terra. Corrobora também
para a dúvida o fato de, naquele período, uma comunidade de cristãos
dissidentes – a maioria de Alexandria, no Egito – ter criado um movimento
chamado gnosticismo, marcado pela produção de textos nos quais a figura do
Jesus preconizada pelo Novo Testamento pode ter sido modificada para tornar o
cristianismo mais palatável ao povo pagão alexandrino. Esse novo Jesus que
nascera ali, entre outros traços, não sentia dor nem sofrimento. Ideias como a
ressurreição, encarnação e morte expiatória na cruz, que não eram bem-vistas
diante dos olhos do mundo grego de Alexandria, ficaram de fora dos textos
apócrifos gnósticos, como os evangelhos de Tomé, Judas e Filipe. Também surgiu
a necessidade de se criar uma esposa para Cristo para, como pregava o
gnosticismo, confirmar a teoria de que espíritos evoluídos estavam sempre em
casais e nunca sozinhos.
O
evangelho de Filipe, por exemplo, traz fragmentos nos quais se menciona o
episódio de um beijo de Jesus em Maria Madalena. “Nessa região e naquela época
se discutia muito se era apropriado ao cristão se casar. Por essas evidências,
supõe-se que o Evangelho da Esposa de Jesus seja um documento surgido em um
ambiente de gnosticismo”, diz o arqueólogo Jorge Fabbro, da pós-graduação em
arqueologia do Oriente Médio Antigo da Universidade de Santo Amaro (Unisa). O
fragmento apresentado no Vaticano, portanto, estaria se referindo a um outro
Cristo, uma divindade maquiada, e não àquele presente no Novo Testamento. Mas
qual é o verdadeiro? Não será esse papiro que irá responder. Mas ele lança
lenha na fogueira por ser mais um texto, diferente dos que já se tem
conhecimento, que aponta para uma possível relação entre Maria Madalena e
Jesus.
Fogueira
que também é alimentada por textos reconhecidos como canônicos pelo
cristianismo ortodoxo, como o Evangelho de Marcos, o primeiro entre aqueles
aceitos pela Igreja a ser escrito. “De repente, Maria Madalena aparece nele
como uma figura do círculo mais íntimo de Jesus, sem nunca sequer ter sido
mencionada”, afirma Fabbro. “Ela surge na morte de Jesus, ao lado da mãe e da
irmã dele, o vê nu, ajuda a ungi-lo e, depois, não mais recebe citações. Isso
sugere um elevado grau de intimidade dela com Jesus, maior do que, à primeira
vista, transparece nos evangelhos.” O casamento entre os cristãos do século I,
porém, era uma possibilidade abençoada. Paulo, por exemplo, cujos textos fazem
parte do cânone oficial, menciona líderes da Igreja casados, como Pedro, os
apóstolos e os irmãos de Cristo.
Na
Israel do século I, nobre não era apenas a pessoa solteira e celibatária. Assim
também seria aquela que, mesmo casada, tivesse a coragem de deixar a família em
segundo plano para servir ao trabalho de Deus. “Se Jesus fosse casado, seria
uma vantagem para ele. Não haveria motivos para os evangelhos bíblicos negarem
o fato”, diz o arqueólogo Silva. Para ele, o Evangelho da Esposa de Jesus é
mais um que reforça o fato de que o Cristo histórico não foi casado, uma vez
que, se tivesse vivido uma relação marital, a discussão ou menção sobre isso
apareceria em livros mais antigos do que os do século II. “Por outro lado,
nota-se um silêncio absoluto no século I sobre o fato e uma grande
efervescência sobre ele no século II. E foi assim porque o Jesus casado é uma
característica de um Cristo construído pela teologia gnóstica.”
Inferir,
então, um relacionamento marital entre Jesus Cristo e Maria Madalena é pura
especulação. Fabbro, o arqueólogo da Unisa, lembra que alguns cristãos
gnósticos acreditavam que, para estarem próximos do que há de melhor no
universo, era preciso rejeitar todos os prazeres relacionados ao corpo, como o
contato físico por meio do sexo e a glutonaria. “Pregadores itinerantes dessa
comunidade viajavam sempre acompanhados do que chamavam de esposa”, diz ele.
“Tratava-se de uma espécie de irmã com quem tinham intimidade de convívio,
apoio mútuo, mas com celibato.” O Evangelho da Esposa de Jesus, então, pode ser
uma manifestação desse costume. Análises químicas da tinta usada no papiro
serão feitas para tentar precisar o tempo em que ele foi escrito. E mais
capítulos dessa – fascinante para muitos e improvável para outros – história
poderão vir à tona.
Fotos:
Karen L. King/Harvard Divinity School/AFP PHOTO; Rose Lincoln/Harvard Staff
Photographer
Revista
Isto É
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