A semelhança entre o corte do crânio e a cena da Criação do Mundo
já tinha sido estudada, mas não a linguagem do olhar dos anjos
Em 1989, o estudante de Medicina paulista Gilson Barreto visitou a Capela Sistina no Vaticano. Como qualquer turista, o mochileiro de 26 anos queria conhecer os afrescos pintados entre 1508 e 1512 no teto do templo por Michelangelo Buonarrotti (1475-1564), considerados uma das obras-primas da humanidade, então passando por restauração. Passeando os olhos pelo teto magnífico, repleto de querubins, profetas e sibilas, Gilson ficou paralisado diante do sexto painel do vão central, O Pecado Original. 'A pintura mostrava uma artéria aorta disfarçada de tronco seco atrás de Eva', conta. Em seguida, visualizou a estrutura de uma escápula (osso do ombro) escondida sob as vestimentas de um dos antepassados de Jesus, numa área lateral.
Gilson não se preocupou com o assunto. De volta a Campinas, estudou mais anatomia e deparou com um corte de arco aórtico idêntico ao que vira na Sistina - inclusive com as artérias coronárias esquerda e direita -, imaginou que Michelangelo houvesse usado a peça anatômica como evocação figurativa. Afinal, os renascentistas eram fascinados pela anatomia humana e brincavam com as formas.
Gilson concluiu a especialização em cirurgia de cabeça e pescoço. Nesse ínterim, colecionou livros sobre Michelangelo. Em 1990, leu um artigo sobre a descoberta do médico americano Frank Meshberger. Ele demonstrava que, na cena central da Sistina, a famosa A Criação de Adão, o manto de Deus representava um corte sagital do crânio e o cérebro nele contido. No hospital em que trabalha, em Campinas, Gilson passou a usar o afresco para ilustrar suas aulas de cirurgia. Em 2001, o médico leu outro artigo, do nefrologista americano Garabed Eknoyan, o qual demonstrava que Michelangelo pintara um fígado no manto de Deus no painel A Criação de Eva.
No afresco A Criação de Eva, ocultam-se um segmento
da árvore brônquica [no detalhe] e a peça anatômica
do pulmão esquerdo, fielmente reproduzida no manto
As sinapses se cruzaram no início do ano passado, quando o médico, procurava o slide do afresco na confusão de uma mudança de casa. Foi então que se fez a pergunta que iria desencadear sua descoberta: 'Michelangelo não teria desenhado outras peças anatômicas nos demais afrescos?'. Passou a noite em claro, meditando sobre uma montanha feita de tratados de arte e anatomia. Com o bisturi da curiosidade, dissecou cada um dos 36 painéis. Topou com um tímpano nos joelhos de Jeremias, e assim por diante. Na manhã seguinte, ainda sem fôlego, chamou seu vizinho, Marcelo de Oliveira, livre-docente em Química da Unicamp, para ajudá-lo. Na mesa de café, os dois passaram o dia vasculhando o material. 'Um atlas quase completo do corpo humano caiu no nosso colo: ossos, laringe, pulmão, cérebro, cerebelo, músculos, tendões, sistema arterial e até um corte de pênis', lembra Marcelo. A dupla passou a associar as peças anatômicas de 32 painéis com as figuras que estavam em torno.
CAPELA SISTINA
Chegaram à constatação mais espantosa: os personagens centrais expõem as partes do corpo camufladas pelo artista [em geral, dobras de tecido]; os personagens, centrais ou não, dirigem o olhar para a parte do corpo que é cifrada na cena; as mãos apontam para a peça anatômica oculta; a luz é maior sobre a parte em questão. Tais detalhes dão uma resposta ao mistério dos 'ignudi', os jovens nus dispostos como molduras em torno dos painéis, sobre cuja função os historiadores de Arte não haviam chegado a um consenso. Pois os 'ignudi' cumprem o papel de 'comentadores' da cena. Estava decifrado o que Gilson e Marcelo denominaram 'o código de Michelangelo'. A dupla não perdeu tempo e, para marcar terreno, produziu em poucos meses A Arte Secreta de Michelangelo - Uma Lição de Anatomia na Capela Sistina.
É coincidência a luxuosa edição do livro - em capa dura - chegar nesta semana às livrarias, na ocasião em que o romance O Código Da Vinci, de Dan Brown, atinge o posto de livro mais vendido no país. Nem Gilson se parece com o herói do suspense, o simbologista Robert Langdon, nem Marcelo é um criptógrafo coadjuvante. A dupla, porém, vive sob um estado de perplexidade: 'Como é que tudo estava lá há 500 anos e ninguém percebeu?', pergunta Gilson. 'É curioso que a faceta de anatomista não tenha sido muito tratada pelos historiadores', pensa Marcelo. 'Preferem crer que Michelangelo era maneirista e se importava pouco com as formas naturais.' Os pesquisadores varreram bancos de dados mundiais para ver se haviam redescoberto a roda, mas acharam só os artigos de Meshberger e Eknoyan - que não chegaram ao código que organizava o conjunto das peças anatômicas. Enviaram uma cópia digital das pranchas para Eknoyan. 'É a melhor notícia que recebo em anos!', respondeu o nefrologista.
O JUIZO FINAL
[acima à direita] e gravura anatômica
Eles aguardam que um teórico explique o que levou o artista a produzir esse teatro anatômico em pleno sanctum sanctorum da Igreja Católica. Luiz Marques, especialista em arte renascentista italiana, se diz cético em relação ao achado, embora ainda não tenha visto o livro. 'Nada permite supor que o artista estivesse imbuído de qualquer conotação extra-artística ou de qualquer esoterismo.' Marques afirma que o 'fascínio pelo tema da mensagem cifrada na obra de arte' revela incompreensão dos enigmas da interpretação de uma obra de arte. Para a professora Tereza Aline de Queiroz, da Universidade de São Paulo, o trabalho altera a visão consagrada sobre Michelangelo. 'Os gestos vistos como maneiristas ganharam nova significação. O pintor parece agora mais renascentista.' Ela se pergunta se a aula de anatomia que teria sido sugerida pelo artista não seria uma velada crítica à Igreja, que ocultava os nus com pinturas de panos.
Outros pensadores e artistas vislumbraram miragens simbólicas nas dobras das vestes de pinturas renascentistas. Sigmund Freud enxergou nas roupas da Virgem de Santa Ana de Da Vinci um indício da homossexualidade do pintor. E há os que usam do recurso para ficção, como Dan Brown. No caso da dupla de cientistas de Campinas, as evidências anatômicas parecem mais conclusivas. 'A comunidade científica e artística internacional deve se pronunciar', espera Gilson. Ele e o parceiro sonham que sua descoberta resulte em consagração. Os céticos podem até duvidar da teoria, mas todos vão concordar em pelo menos um ponto: é uma incrível coincidência.
DETALHES DE ANATOMIA NAS PINTURAS
1- A sibila dirige o olhar para o ombro
2-O querubim aponta para o próprio ombro
3- Os meninos nas colunas examinam seus ombros
4- Existe mais luz no ombro
5- Há mais realce de cor e luz na veste que oculta a peça anatômica
Peça anatômica, de cabeça para baixo
1- Cabeça do úmero 2- Cavidade glenóide
DETALHE DA OBRA JOEL E A TÊMPORA
1- Extremidade pontiaguda do papel
é igual à do arco zigomático
2- Torção do osso perto do orifício do ouvido
corresponde à torção do papel lido por Joel
3- Os contornos do manto de Joel
correspondem ao contorno do osso temporal
4- A estrutura triangular em que Joel apóia o braço
corresponde ao processo mastóide
5- O nicho escuro abaixo do braço direito
corresponde ao orifício do ouvido
Querubim aponta para a têmpora de Joel
revistaepoca.globo.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário