Muitas pessoas já tiveram contato
através da leitura ou pelo menos já ouviram falar nas genealogias de Jesus
Cristo apresentadas na Bíblia nos dois Evangelhos sinóticos, Mateus e Lucas.
Infelizmente pouquíssimas pessoas se aprofundam nessas passagens encontradas
nos dois Evangelhos, chegando a ponto de pularem esses versículos em suas
leituras, exceto, alguns exegetas bíblicos e acadêmicos de teologia, mesmo
assim, a maioria ainda segue uma linha ortodoxa e tendenciosa em suas
investigações, não permitindo assim, uma leitura mais imparcial e libertadora
de dogmas pré-concebidos.
A genealogia de Jesus no Evangelho
de Mateus (Mt.1.1-17) apresenta quarenta e dois antepassados divididos em três
módulos de catorze gerações cada: de Abraão a Davi, em seguida até o cativeiro
babilônico, chegando por último em José, marido de Maria, mãe de Jesus. Em
Lucas (Lc.3.23-38), esta genealogia é diferente, são descritos cinquenta e
quatro antepassados, sendo que a partir de Davi, a lista segue por Natan e não
por Salomão como está em Mateus.
Segundo a interpretação
conservadora da igreja, a diferença entre essas duas genealogias encontra-se no
objetivo de cada autor. No caso de Mateus, a intenção seria apresentar Jesus
como o Messias Rei da linhagem de Davi, que veio para libertar o povo eleito do
julgo da escravidão. Em Lucas, a preocupação do autor encontra-se em apresentar
Jesus como o Salvador Universal (Sóter), que tem sua linhagem desde Adão, ou
seja, Jesus seria um segundo Adão, que veio para resgatar a humanidade da queda
ocorrida no Éden.
Analisando a interpretação
tradicional da igreja, percebemos que a preocupação com a transmissão da
mensagem dos autores dos Evangelhos, encontra-se atrelada aos acontecimentos de
ordem histórico-salvífica coletiva, e não num âmbito mais transcendente e
individual, que na realidade, como tudo indica, seria mais provável. Tanto é,
que para os próprios Judeus, Essa idéia de Jesus como Messias Rei, é totalmente
absurda, pois em sua historicidade e trajetória, não se enquadra em nenhum
requisito para ocupar tal posição na história do povo escolhido.
A partir de agora
apresentarei algumas questões de aprofundamento sobre o tema, buscando com
isso, despertarmos para uma reflexão mais profunda e refinada a respeito da
genealogia de Jesus, livre das amarras dogmáticas e fundamentalistas.
Levando em consideração os
propósitos teológicos das genealogias de Jesus, começo com algumas perguntas
polêmicas: Qual seria o sentido transcendente (mais profundo e oculto) para
tais descrições detalhadas? E o significado dos números em ordens harmônicas e
nomes citados? Poderia haver uma relação entre ambos, sabendo que cada nome
originariamente em aramaico (língua derivada do hebraico) possuía um sentido
particular (inclusive mais de um sentido de acordo com a gematria numérica)?
Essas são apenas algumas das várias perguntas que o texto nos leva a refletir e
consequentemente buscar pistas para a solução das questões levantadas.
Como falamos acima, são
muitas as dificuldades encontradas nas duas genealogias, cuja solução nos leva
a algumas observações interessantes feitas por grandes teólogos, pesquisadores
e estudiosos heterodoxos.
Segundo o Abade e Filósofo
Perenista Stephane(01), afirma o seguinte: "Pode-se afirmar que Mateus apresenta a genealogia
"legal" e Lucas a genealogia "natural". Sendo a primeira
referente a José a segunda a Maria. Embora aparentemente se refiram ambas a
José, não se deve esquecer que José e Maria seriam primos, e com certas
considerações levando em conta que entre os nomes citados Heli, Heliakim e
Joaquim (pai de Maria), seriam sinônimos. Ambas as genealogias tem Davi como
ponto de referência comum por uma série diferente de nomes, o que confirmaria a
proposição de uma genealogia legal e outra natural. Assim os evangelistas
dariam a genealogia de Jesus sob dois aspectos diferentes, apresentando-o como
herdeiro de Davi não somente legal, mas natural. Mas do ponto de vista
teológico as duas exprimem a sua maneira o dogma das duas naturezas do Cristo:
a natureza divina e a natureza humana, unidas na Pessoa do Verbo. A genealogia
legal corresponde à natureza divina posto que parte de Abraão, pai do Povo
eleito, e se situa por consequência na ordem da Graça. Enquanto isso a
genealogia natural remonta a Adão e se situa na ordem natural."
Para o hermeneuta Roberto Pla(02), "O "filho" da promessa de Davi, o fruto de seu seio de varão, foi com efeito, por descendência manifesta da dinastia davídica, Jesus, o Cristo, manifesto e oculto ao mesmo tempo, mas Jesus se cuida de que fique consignado no evangelho que o nascido do céu, o Cristo oculto, o Filho do homem eterno, pré-existente, que se senta à direita do Pai, é nomeado por Davi não como "filho", senão como "seu Senhor". Confirma Jesus com esta pontualização sua presença em Davi, sua identidade essencial com o ungido, tal como havia confirmado sua presença em Abraão e antes de Abraão: "Antes que Abraão existira, Eu Sou". Sem dúvida, antes que Abraão existira e também em tempos de Davi, a Palavra já se havia feito carne e havia disposto sua morada entre nós."
Para Antônio Orbe(03), "nos
primeiros séculos em torno da aparição do Logos, alguns escritos descrevem o
mistério desde a vertente do Logos como "assimilação, apropriação,
assunção, vestição". O Filho de
Deus "assume" substâncias ou elementos de natureza variada para
salvar por seu meio aos homens. O acento é sobre a "apropriação" -
pelo Logos - do espírito, alma e corpo (carne) peculiares ao homem.
Segundo as substâncias
assumidas pelo Filho de Deus, conviria distinguir três aspectos fundamentais:
a) "espiritualização", ou assunção do pneuma; b)
"animação", apropriação da alma (racional); c)
"encarnação", assimilação da carne (sarx).
Os três aspectos têm sua
importância. E talvez, conforme à soteriologia gnóstica, decrescem em ordem de
dignidade. Mais importa para os heterodoxos a "espiritualização" do
Logos que sua "animação", e mais esta última que sua
"encarnação". O interesse dos mistérios se mede conforme a sua
vinculação à salvação, de um lado, e à dignidade da salvação a que se ordenam,
por outro. Se, gnosticamente falando importa, sobretudo, a salvação dos
indivíduos "espirituais", o primeiro na aparição do Logos entre os
homens será sua "espiritualização" (=assunção do pneuma). A
"animação" (= apropriação da alma racional) virá depois. E somente
por último lugar se deixará sentir a estrita "encarnação" (=
"vestição" do corpo).
Dentro da perspectiva
heterodoxa, a "encarnação" forma parte do mistério global da assunção
pelo Logos das substâncias (= gêneros) humanas. Como apropriação da natureza
íntima do homem, a estrita "encarnação" não somente se subordina à
"animação" e à "espiritualização", mas - para alguns
gnósticos - resulta inteiramente secundária e cede posto à "encarnação sui
generis" necessária e suficiente para salvar a rigorosa
"animação" e "espiritualização" do Filho de Deus entre os
homens. Se o Logos pudesse "salvar" a "alma" (resp.
linhagem racional humana) e o "pneuma" (resp. linhagem espiritual
humana) sem aparecer (sensivelmente) e viver (e morrer) entre os homens,
sobraria o mistério da "encarnação".
Mas na atual ordem de coisas
não lhe bastam simplesmente, as duas essências salváveis (pneuma e alma
racional). Além de assumir as primícias das duas igrejas chamadas à salvação, o
Logos deve aparecer entre os homens, anunciar-lhes sua doutrina, morrer nas
mãos deles. Para tal fim a "encarnação" ou parusia entre os homens
carnais."
Talvez as respostas mais
profundas e arquetípicas sobre a questão das genealogias de Jesus, pode
ser encontrada na tradição Hermética Cristã, que analisa o fato através
do simbolismo da espiral histórica, bem nos moldes da teologia egípcia que é
revelada através das setenta e oito cartas do Tarô (22 cartas dos Arcanos
Maiores, que tem uma estreita relação com as 22 letras do alfabeto Hebraico, e
56 cartas dos Arcanos Menores, que expressam os resultados e as formas das
idéias, contidos no primeiro conjunto). Vale a pena lembrar que a história de
Jesus é muito semelhante em sua narrativa a de Hórus (filho do sol) e Osíris,
além do mais, sabemos que os Evangelhos foram reunidos pelo Bispo Atanásio em
Alexandria, no Egito, o principal berço intelectual e filosófico da época.
Confira a análise segundo o hermetismo cristão: "Outro
exemplo do simbolismo da espiral, enquanto arcano do crescimento, é a
preparação da vinda de Cristo na história. O Evangelho segundo Mateus faz dela
uma espécie de genealogia de Jesus, resumida numa única frase: "De Abraão
até Davi?, quatorze gerações; de Davi? até o exílio na Babilônia, catorze
gerações; e do exílio na Babilônia até Cristo, quatorze gerações (Mt
1,17).
Eis aí a espiral da história da
preparação da vinda de Cristo, espiral de três círculos ou "passos",
cada um de catorze gerações. O primeiro círculo ou "passo" da espiral
é aquele no qual a tríplice impressão dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó -
impressão do alto, correspondente ao sacramento do batismo em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo - tornou possível a revelação e a aliança do monte
Sinai e chegou ao estado em que a Lei se tornou alma numa pessoa humana, a de
Davi? Porque foi em Davi? Que os mandamentos e as ordenações da Lei revelada "com
trovões, relâmpagos e uma espessa nuvem sobre a montanha... ao povo
amedrontado", se interiorizaram ao ponto de se tornarem amor e
consciência, coisas do coração atraído pela verdade e beleza deles. Em Davi? a
Lei se tornou alma: por isso, também as suas transgressões deram lugar, na
alma, a uma força nova, a penitência interior.
O primeiro "passo" da espiral, as catorze gerações de Abraão até Davi?, corresponde, pois, ao processo de interiorização, que se verificou desde o sacramento do batismo (os três patriarcas), passando pelo sacramento da confirmação (a Aliança no deserto do Sinai), até o sacramento da penitência.
O segundo círculo ou "passo" da espiral, as catorze gerações de Davi? até a deportação para Babilônia, é a escola de Davi?, a escola da penitência interior, a qual alcançou seu fim exterior, a expiação, a deportação para Babilônia.
O terceiro círculo ou
"passo" da espiral, as catorze gerações da deportação em Babilônia
até Cristo, corresponde ao que se passa espiritualmente entre o último ato do
sacramento da penitência - a absolvição - e o sacramento da Sagrada Comunhão ou
Eucaristia, o da presença e recepção de Cristo."
Através deste pequeno estudo
percebemos o quanto é profundo e complexo fazer uma análise das genealogias de
Jesus Cristo, montrando-nos que elas não estão ali pelo simples fato de estar
relatando uma historicidade, ou apenas como uma recordação bibliográfica do
Antigo Testamento e suas origens na forma de promessa e cumprimento. Sua
complexidade vai muito além, transcende toda sistemática teológica tradicional,
nos leva a um estágio mais elevado, revelando-nos que toda a trajetória é ao
mesmo tempo individual e coletiva, ou seja, a elevação a um estado de
consciência superior (iluminação), é fruto da experiência individual ao longo
desta jornada histórica, e a manifestação dessa realização acontece e é
reconhecida coletivamente, visto que é preciso que todos os seres humanos
despertem primeiro, pois senão, não será possível reconhecer a Glória de Deus.
Notas:
01 - Abade Stephane. Nada
publicou em vida embora muito tenha escrito e refletido, tendo por base, a
partir de um certo momento sua profunda leitura de René Guénon. Graças a Jean
Borella e François Chenique, foram publicados dois volumes de coletâneas de
seus ensaios, "Introduction à l'ésotérisme chrétien" - Dervy-Livres,
onde se pode admirar sua apropriação do pensamento de Guénon em termos
cristãos.
02 - Roberto Pla. Pensador
tradicionalista com trabalhos de grande profundida como sua tradução do Tratado
da Unidade, atribuído a Ibn Arabi ou a sua escola, e a notável exegese do
Evangelho de Tomé que utilizamos em nossa seção "Biblioteca de Nag Hammadi".
A beleza da hermenêutica praticada por Roberto Pla, deste evangelho, está na
abordagem tradicional de se valer do Novo Testamento ele mesmo, como
"chave" para "re-velar" o Cristo e seu ensinamento.
03 - Antonio Orbe é um dos
mais conceituados estudiosos do gnosticismo dentro da Igreja Católica, tendo se
notabilizado por seus "Estudos Valentinianos", hoje em dia difíceis
de se encontrar. Suas obras servem de referência a todos aqueles que desejam se
aprofundar de modo sério na tradição dos gnósticos e da própria tradição cristã
dos primeiros séculos do cristianismo.
Bibliografia:
Cristologia gnostica:
Introduccion a la soteriologia de los siglos II y III (Biblioteca de autores
cristianos; 384-385 : 2, Autores contemporaneos) (Spanish Edition)
Abbé Henri Stéphane,
Introduction à l'ésotérisme chrétien II ; « De l'ésotérisme chrétien », Edition
Dervy.
*Kadu Santoro é designer
gráfico, teólogo, professor e pesquisador, residente na cidade do Rio de
Janeiro, responsável pela publicação do Jornal Despertar, um informativo
teológico e filosófico e do blog www.jornaldespertar.blogspot.com
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