sábado, 1 de junho de 2019

LINHAGEM SAGRADA CIVILIZAÇÃO CELTA MEROVÍNGIO CRISTIANISMO


Encontramos vários enigmas em torno da origem da dinastia merovíngia. Uma dinastia é usualmente considerada uma família ou uma casa que governa, em virtude de haver deslocado, deposto ou suplantado seus predecessores. Em outras palavras, pensa-se que uma dinastia começa com algum tipo de golpe de Estado, que freqüentemente inclui a extinção da linha reinante anterior. Na Inglaterra, a Guerra das Rosas, por exemplo, marcou a mudança de uma dinastia. Mais ou menos um século depois, os Stuart tomaram o trono inglês quando os Tudor foram extintos. E os próprios Stuart foram depostos pelas casas de Orange e de Hanover.

No caso dos merovíngios, contudo, não houve tal transição violenta ou abrupta, nem usurpação, nem deslocamento, nem extinção de um regime anterior. Pelo contrário, a casa que veio a ser chamada merovíngia parece ter reinado já sobre os francos. Os merovíngios eram considerados reis de direito. Mas parece haver existido algo de especial sobre eles, tanto que conferiram seu nome à dinastia inteira.

O governante de quem os merovíngios derivaram seu nome é muito obscuro, sua realidade histórica tendo sido eclipsada pela lenda.

Mérovée (Merovech ou Meroveus) foi uma figura semi-sobrenatural, digna do mito clássico. Até mesmo seu nome testemunha origem e caráter miraculosos: evoca a palavra francesa para "mãe", bem como as palavras em francês e em latim para "mar".

Tanto os principais cronistas francos quanto a tradição subsequente contam que Mérovée nasceu de dois pais. Quando já estava grávida de seu marido, o rei Clodio, a mãe de Mérovée teria ido nadar no oceano. Na água, ela teria sido seduzida e/ ou violada por uma criatura marinha não identificada, de além-mar - bestea Neptuni Quinotauri similis, "uma besta de Netuno semelhante a um Quinotauro", o que quer que fosse Quinotauro -, que teria engravidado a dama uma segunda vez. E quando Mérovée nasceu, supostamente corria em suas veias um amálgama de dois sangues diferentes, o sangue de um governante franco e o de uma misteriosa criatura aquática.

Tais lendas fantásticas são bastante comuns, é claro, não somente no mundo antigo, mas também na posterior tradição européia. Em geral, não são inteiramente imaginárias, mas simbólicas ou alegóricas, mascarando algum fato histórico concreto por trás de sua fachada fabulosa. No caso de Mérovée, a fachada poderia bem indicar algum tipo de intercruzamento - uma genealogia transmitida através da mãe, como no judaísmo, por exemplo, ou uma mistura de linhas dinásticas, na qual os francos se tornassem aliados de alguém por sangue, possivelmente com uma fonte "de além-mar", Uma fonte que, por uma ou outra razão, foi transformada pela fábula em uma criatura do mar, Em todo caso, em virtude de seu duplo sangue, Mérovée era considerado possuidor de uma série de poderes sobre-humanos. E qualquer que seja a atualidade histórica por trás da lenda, a dinastia merovíngia continuou a ser envolvida numa aura sobrenatural de magia e bruxaria. Segundo a tradição, os monarcas merovíngios eram adeptos do oculto, iniciados em ciências arcaicas, praticantes de artes esotéricas, rivais dignos de Merlin, seu fabuloso quase contemporâneo.

Eles eram freqüentemente chamados de "reis bruxos", ou "reis taumaturgos". Em virtude de alguma propriedade miraculosa de seu sangue, seriam capazes de curar com as mãos; e segundo uma narrativa, as franjas dos pingentes de suas roupas teriam poderes curativos milagrosos. Eles seriam capazes de clarividência ou comunicação telepática com animais e com o mundo natural ao seu redor, e de utilizar um poderoso colar mágico.

Possuiriam um amuleto arcaico que lhes protegia e garantia fenomenal longevidade - o que a história, incidentalmente, não parece confirmar. Todos eles possuíam supostamente um sinal congênito, que os tornava imediatamente identificáveis e atestava seu sangue semidivino, ou sagrado. Este sinal congênito tomaria a forma de uma cruz vermelha - uma curiosa antecipação do brasão dos templários - sobre o coração ou entre as omoplatas.

Os merovíngios eram também freqüentemente chamados "reis de cabelos longos". Seus cabelos, como os de Sansão, conteriam sua vertu, a essência e o segredo de seu poder. Quaisquer que sejam as bases para esta crença no poder dos cabelos dos merovíngios, ela parece ter sido levada bastante a sério até 754 d.C. Nesse ano, quando Childeric III foi deposto e preso, seu cabelo foi ritualmente tosado por ordem expressa do papa.

Embora sejam extravagantes, as lendas formadas em torno dos merovíngios parecem repousar sobre alguma base, alguma condição gozada pelos monarcas dessa linhagem durante toda a sua vida. De fato, eles não eram considerados reis no sentido moderno da palavra.

Eram tidos como reis-sacerdotes, como incorporações do divino, nisso não diferindo, digamos, dos antigos faraós egípcios. Não reinavam simplesmente por graça divina. Pelo contrário, eram aparentemente imbuídos da incorporação e encarnação da graça de Deus, uma condição em geral reservada exclusivamente a Jesus. E parecem terse engajado em práticas rituais que lembravam mais um sacerdócio do que um reinado. Crânios de monarcas merovíngios encontrados, por exemplo, revelam o que parece ser uma incisão ritual ou buraco na cabeça. Incisões similares podem ser encontradas nos crânios de altos sacerdotes do antigo budismo tibetano - para permitir à alma escapar da morte e estabelecer contato direto com o divino. Existem razões para supor que o tosamento clerical seja um resíduo dessa prática.

Em 1653, uma importante tumba merovíngia foi encontrada nas Ardenas, a tumba do rei Childeric I, filho de Mérovée e pai de Clóvis, o mais famoso e influente de todos os governantes merovíngios. Como seria de se esperar, a tumba continha armas, tesouro e regalias, mas continha itens mais característicos de magia, bruxaria e adivinhação do que de reinado: uma cabeça de cavalo cortada, uma cabeça de touro feita de ouro e uma bola de cristal.

Um dos símbolos mais sagrados dos merovíngios era a abelha; e a tumba do rei Childeric continha nada menos que trezentas miniaturas de abelhas feitas de ouro maciço. Juntamente com outros materiais da tumba, essas abelhas foram confiadas a Leopold Wilhelm Von Habsburgo, irmão do imperador Ferdinando III e, na época, governante militar da Holanda Austríaca. Finalmente, a maior parte do tesouro de Childeric retornou à França. Quando foi coroado imperador, em 1804, Napoleão fez questão de ter abelhas douradas afixadas em suas roupas.

Não foi a única manifestação do interesse de Napoleão pelos merovíngios. Para determinar se a linhagem merovíngia tinha sobrevivido à queda da dinastia, ele encomendou a um certo abade Pichon uma compilação de genealogias que, em grande parte, serviram de base para as genealogias dos Documentos do Monastério.

As lendas formadas em torno dos merovíngios revelaram-se dignas da época de Arthur e dos romances do cálice. Ao mesmo tempo, constituíram uma muralha assustadora entre nós e a realidade histórica que queríamos explorar. Quando finalmente ganhamos acesso a ela - ou ao pouco que havia sobrevivido - essa realidade se mostrou de algum modo diferente das lendas. Mas ela não era menos misteriosa, extraordinária ou evocativa.

Nós encontramos pouca informação verificável sobre as verdadeiras origens dos merovíngios. Eles próprios pretendiam descender de Noé, a quem respeitavam, mais que a Moisés, como a fonte de toda a sabedoria bíblica; uma posição interessante, que emergiu novamente mil anos mais tarde na maçonaria européia. Os merovíngios também pretendiam descender diretamente de Tróia – o que, verdade ou não, poderia servir de explicação para a ocorrência, na França, de nomes troianos como Troyes e Paris. Escritores mais contemporâneos - inclusive os autores dos Documentos do Monastério - têm tentado seguir os merovíngios até a Grécia antiga, especificamente até a região conhecida como Arcádia. De acordo com os documentos, os ancestrais dos merovíngios eram relacionados com a casa real da Arcádia. Em uma data não especificada, próxima ao advento da era cristã, eles teriam migrado Danúbio acima, e depois Reno acima, estabelecendo-se no que é hoje a parte ocidental da Alemanha.

A derivação dos merovíngios, de Tróia ou da Arcádia, parece hoje uma questão acadêmica, e não há necessariamente conflito entre as duas afirmações. Segundo Homero, um contingente substancial de arcadianos estava presente no cerco a Tróia. E segundo histórias gregas antigas, Tróia foi fundada por gente da Arcádia. Vale a pena também notar que o urso, na antiga Arcádia, era um animal sagrado, base de cultos de mistério, um totem, ao qual sacrifícios rituais eram oferecidos. Realmente, o próprio nome Arcádia deriva de arkades, que significa "povo do urso". Os antigos arcadianos pretendiam descender de Arkas, a deidade patrona da terra, cujo nome também significa urso. De acordo com a mitologia grega, Arkas era filho de Kallisto, uma ninfa relacionada com Artêmis, a caçadora. Modernamente, Kallisto é mais conhecida como a constelação Ursa Maior.

Entre os francos sicambrianos, dos quais surgiram os merovíngios, o urso gozava de uma condição igualmente exaltada. Assim como os antigos arcadianos, eles veneravam o urso na forma de Artêmis - ou, mais especificamente, na forma de seu equivalente gaulês, Arduína, deusa patrona de Ardenas. O culto misterioso a Arduína persistiu até a Idade Média, sendo Lunéville um de seus centros, próximo de dois outros locais recorrentes em nossa investigação, Stenay e Orval. Em 1304, a Igreja ainda promulgava estatutos proibindo a veneração dessa deusa pagã.

Dada a condição mágica, mística e de totem do urso no centro merovíngio de Ardenas, não é de se surpreender que nos Documentos do Monastério o nome Ursus seja associado à linhagem merovíngia real. Mais surpreendente é o fato de a palavra gaulesa para urso ser arth, de onde deriva o nome Arthur. Embora não tenhamos seguido o assunto até esse ponto, a coincidência nos intrigou. Arthur não seria somente contemporâneo dos merovíngios, mas também, como eles, associado com o urso.

No início do século V, a invasão dos hunos provocou migrações em grande escala de quase todas as tribos européias. Foi nessa época que os merovíngios - ou, mais precisamente, os ancestrais sicambrianos dos merovíngios - cruzaram o Reno e se mudaram em massa para a Gália, estabelecendo-se no que hoje é a Bélgica e o norte da França, nas vizinhanças de Ardenas. Um século mais tarde essa região veio a se chamar reino de Austrasie. E o centro desse reino estava situado no que hoje se chama Lorraine.

O influxo sicambriano na Gália não consistiu de uma horda de selvagens bárbaros invadindo tumultuosamente a terra. Pelo contrário, foi um processo plácido e civilizado. Durante séculos os sicambrianos tinham mantido contato com os romanos, e, embora fossem pagãos, não eram selvagens. Eram bem versados em costumes e administração romana, e seguiam as modas romanas. Alguns sicambrianos se tinham tornado oficiais de alto escalão no exército imperial. Alguns tinham até chegado a cônsules romanos. Por isso, o influxo sicambriano foi mais uma absorção pacífica do que um ataque ou uma invasão. E quando o império romano caiu, no final do século V, os sicambrianos preencheram o vácuo. Não o fizeram violentamente, pela força. Mantiveram os velhos costumes e alteraram muito pouco. Sem nenhum levante, assumiram o controle do aparelho administrativo já existente, mas vago. O regime dos primeiros merovíngios se harmonizou, portanto, com o modelo do velho império romano.

Nossa pesquisa exumou menções de pelo menos duas figuras históricas chamadas Mérovée, e não sabemos qual delas é considerada, pela lenda, descendente da criatura do mar. Um dos Mérovée foi um chefe sicambriano que viveu em 417, lutou sob os romanos e morreu em 438. Pelo menos um especialista moderno nesse período sugere que este Mérovée realmente visitou Roma e causou uma certa sensação. Há, de fato, registro de uma visita de um imponente líder franco, conspícuo por seu esvoaçante cabelo amarelo.

Em 448, o filho deste Mérovée, com o mesmo nome do pai, foi proclamado rei dos francos em Tournai e reinou até sua morte, dez anos depois. Ele pode ter sido o primeiro rei oficial dos francos como um povo unido. Em virtude disto, talvez, ou de todo o simbolismo desse fabuloso nascimento duplo, a dinastia que o sucedeu foi chamada desde então merovíngia.

O reino dos francos floresceu sob os sucessores de Mérovée. Não foi a cultura bárbara freqüentemente imaginada. Pelo contrário, merece ser comparado, em muitos aspectos, com a grande civilização de Bizâncio. Até mesmo a literatura secular era encorajada, tendo sido mais amplamente difundida do que seria nas duas dinastias e nos quinhentos anos subseqüentes. Esta literatura se estendia aos governantes - um fato surpreendente, dado o caráter rude e iletrado dos últimos monarcas medievais. O rei Chilperic, por exemplo, que reinou durante o século VI, não só construiu amplos anfiteatros de estilo romano em Paris e em Soissons, como também foi um poeta dedicado e exemplar, orgulhoso de sua arte. Narrativas literais de suas discussões com autoridades eclesiásticas refletem sutileza, sofisticação e aprendizado extraordinários, qualidades que dificilmente seriam associadas a um rei da época. Em muitas dessas discussões, Chilperic se revelava mais do que igual a seus interlocutores clericais.

Sob o reino dos merovíngios, os francos eram freqüentemente brutais. Mas não eram, na realidade, um povo guerreiro por natureza ou por disposição. Não eram como os vikings, vândalos, visigodos ou hunos.

Suas atividades principais eram a agricultura e o comércio. Muita atenção davam ao comércio marítimo, especialmente no Mediterrâneo. E os artefatos da época dos merovíngios refletem um trabalho de alta qualidade, como comprova o tesouro do navio Sutton Hoo.

A riqueza acumulada pelos reis merovíngios foi enorme, mesmo para os padrões de épocas ulteriores. Muito de sua riqueza consistia em moedas de ouro de soberba qualidade, produzidas por casas reais localizadas em alguns locais importantes, incluindo o que é hoje Sinai, na Suíça. Espécimes de tais moedas foram encontradas no tesouro do navio Sutton Hoo e podem ser vistas hoje no Museu Britânico. Muitas dessas moedas portam uma cruz de braços iguais, idêntica àquela posteriormente adotada durante as Cruzadas pelo reino franco de Jerusalém.

Sangue Real
Embora a cultura merovíngia fosse ponderada e surpreendentemente moderna, os monarcas que a presidiam eram já outro assunto. Não eram típicos nem mesmo dos governantes de seu tempo, pela atmosfera de mistério e lenda, mágica e sobrenatural, que os rodeava em vida. Os costumes e a economia do mundo merovíngio não diferiam marcantemente de outros do período, mas a aura sobre o trono e a linhagem real era bem peculiar.

Os filhos de sangue merovíngio não eram reis fabricados. Ao contrário, logo aos doze anos de idade eram considerados como tal.

Não havia cerimônia pública de unção, ou de coroação. O poder era simplesmente assumido, como se por direito sagrado. Mas enquanto o rei era autoridade suprema no reino, ele não era jamais obrigado – ou mesmo não se esperava dele que o fizesse - a manchar suas mãos com o ato mundano de governar. Ele era essencialmente uma figura ritualizada, um rei-sacerdote, e seu papel não era o defazer alguma coisa, mas de simplesmente ser. Em suma, o rei mandava, mas não governava. A este respeito, sua condição era de algum modo similar à da atual família real britânica. Governo e administração eram deixados para um oficial não real, equivalente a um chanceler. De modo geral, a estrutura do regime merovíngio tinha muitas coisas em comum com as monarquias constitucionais modernas.

Mesmo após sua conversão ao cristianismo, os governantes merovíngios se mantiveram polígamos, assim como os patriarcas do Velho Testamento. Ocasionalmente, possuíam haréns de proporções orientais. Mesmo quando a aristocracia, sob pressão da Igreja, tornou-se rigorosamente monogâmica, a monarquia permaneceu isenta. E a Igreja, curiosamente, parece ter aceito essa prerrogativa sem qualquer protesto. Segundo um comentarista:

Por que era ela [a poligamia] tacitamente aprovada pelos próprios francos? Nós podemos aqui estar em presença de um hábito antigo de poligamia em uma família real - uma família de tal nível que seu sangue não poderia ser enobrecido por nenhuma combinação, por mais vantajosa que fosse, nem degradado pelo sangue de escravos.

(...) Era indiferente se uma rainha fosse tirada de uma dinastia real ou do meio de cortesãs. (...) A fortuna da dinastia permanecia em seu sangue e era compartilhada por todos os que fossem daquele sangue.

E novamente: "É possível que, nos merovíngios, possamos ter uma dinastia de heerkönige alemães, derivada de uma antiga família de reis do período da migração." Quantas famílias podem ter gozado, em toda a história mundial, de tal condição exaltada e extraordinária?

Por que os merovíngios? Por que seu sangue estaria investido de tão imenso poder? Estas perguntas continuavam a nos intrigar.

Clóvis e seu Pacto com a Igreja
O mais famoso de todos os governantes merovíngios foi o neto de Mérovée, Clóvis I, que reinou entre 481 e 511. Seu nome é conhecido de todos os estudantes franceses, pois foi sob Clóvis que os francos se converteram ao cristianismo romano. E foi através dele que Roma começou a estabelecer na Europa Ocidental uma supremacia que não foi desafiada durante mil anos.

Por volta de 496, a Igreja Romana estava em situação precária. Ao longo do século V, sua própria existência tinha sido severamente ameaçada. Entre 384 e 399, o bispo de Roma já tinha começado a se denominar papa, mas sua condição oficial não era maior do que a de qualquer outro bispo, e bem diferente da do papa atual. Ele não era, em nenhum sentido, o líder espiritual ou a cabeça suprema da cristandade. Representava apenas um conjunto de interesses velados, uma das muitas formas divergentes de cristianismo, que lutava desesperadamente pela sobrevivência, contra uma variedade de cismas e pontos de vista teológicos conflitantes. Oficialmente, a Igreja Romana não possuía maior autoridade do que, digamos, a Igreja Celta, com a qual estava em atrito permanente. Sua autoridade não era maior do que a de heresias, como o arianismo, que negava a divindade de Jesus e insistia em sua humanidade. Durante a maior parte do século V, os bispados da Europa Ocidental ou eram arianos ou estavam vagos.

Se a Igreja Romana quisesse sobreviver e, além disso, exercer sua autoridade, ela necessitaria do apoio de um campeão, uma poderosa figura secular que pudesse representá-la. Para que a cristandade evoluísse de acordo com a doutrina romana, esta doutrina deveria ser disseminada, implementada e imposta por força secular - uma força suficientemente poderosa para enfrentar e finalmente extirpar o desafio dos credos cristãos rivais. Não é de se surpreender, então, que a Igreja Romana, em seu momento de necessidade mais aguda, procurasse Clóvis.

Por volta de 486, Clóvis tinha aumentado significativamente a extensão dos domínios merovíngios, lançando-se de Ardenas para anexar vários reinos e principados adjacentes, vencendo várias tribos rivais. Como resultado, muitas cidades importantes - Troyes, por exemplo, Rheims e Amiens - foram incorporadas ao reino. Em uma década, tornou-se claro que Clóvis estava a caminho de se tornar o chefe mais poderoso da Europa Ocidental.

A conversão e o batismo de Clóvis revelaram-se de importância crucial em nossa investigação. Uma narrativa do acontecimento foi compilada, em todos os detalhes, mais ou menos na época em que ele ocorreu. Dois séculos e meio mais tarde, esta narrativa, chamada A vida de São Rémy, foi destruída, exceto por umas poucas páginas manuscritas avulsas. E as evidências sugerem que ela foi destruída deliberadamente. Apesar disso, os fragmentos restantes testemunham a importância do que estava envolvido ali.

Segundo a tradição, a conversão de Clóvis foi súbita e inesperada, efetuada por sua esposa, Clotilde, ardente devota de Roma, que teria importunado seu marido até que ele aceitasse sua fé, tendo sido canonizada depois por seus esforços. Nesses esforços, ela teria sido guiada e assistida por seu confessor, São Rémy. Mas por trás dessas tradições repousa uma realidade histórica muito prática e mundana.

Quando Clóvis se converteu ao cristianismo romano e tornou-se o primeiro rei dos francos, ele tinha mais a ganhar do que a aprovação de sua mulher. Estava em jogo um reino mais tangível e substancial que o reino dos céus.

Sabe-se que, em 496, várias reuniões secretas ocorreram entre Clóvis e São Rémy. Imediatamente depois, estabeleceu-se um acordo entre Clóvis e a Igreja Romana. Para esta, foi um triunfo político importante, que asseguraria a sobrevivência da Igreja, estabelecendo-a como a suprema autoridade espiritual no Ocidente. Ele consolidou a condição de Roma como igual à da fé ortodoxa grega, baseada em Constantinopla; ofereceu uma perspectiva de hegemonia romana e meios efetivos de erradicar as cabeças de hidra da heresia. E Clóvis representava os meios de implementar estas coisas: a espada da Igreja, o instrumento pelo qual Roma imporia sua dominação espiritual, o braço secular e a manifestação palpável do poder romano.

Em troca, Clóvis receberia o título de Novus Constantinus. Em outras palavras, presidiria um império unificado - o Sacro Império Romano -, projetado para suceder àquele supostamente criado sob Constantino e destruído pouco tempo depois por visigodos e vândalos. Segundo um especialista moderno do período, Clóvis, antes de seu batismo, foi

"fortificado (. . .) com visões de um império que sucederia ao de Roma, que seria a herança da raça merovíngia".

De acordo com outro escritor moderno, "Clóvis deve agora tornar-se um rei do império ocidental, um patriarca dos alemães ocidentais, reinando, embora não governando, sobre todos os povos e reis".

O pacto entre Clóvis e a Igreja Romana, em suma, trouxe sérias conseqüências para a cristandade - não somente a daquele tempo, mas também a do milênio seguinte. O batismo de Clóvis marcaria o nascimento de um novo império romano, um império cristão, baseado na Igreja Romana e administrado, no nível secular, pela linhagem merovíngia. Um laço indissolúvel foi estabelecido entre e Estado, cada um devendo fidelidade ao outro, cada um se ligando perpetuamente ao outro. Para ratificar este laço, Clóvis, em 496, deixou-se batizar formalmente por São Rémy em Rheims. No clímax da cerimônia, São Remy pronunciou suas famosas palavras: 

Mitis depone colla, Sicamber, adora quod incendisti, incendi quod adorasti. *
* Inclinai vossa cabeça humildemente, sicambriano, reverenciai o que haveis queimado e queimai o que haveis reverenciado*

É importante observar que, ao contrário do que historiadores às vezes sugerem, o batismo de Clóvis não foi uma coroação. A Igreja não fez de Clóvis um rei. Ele já o era, e tudo o que a Igreja podia fazer era reconhecê-lo como tal. Ao fazê-lo, a Igreja se ligava oficialmente não só a Clóvis, mas a uma linhagem. Neste ponto, o pacto se assemelhava àquele selado, segundo o Velho Testamento, entre Deus e o rei Davi - um pacto que pode ser modificado, como no caso de Salomão, mas não revogado, quebrado ou traído. E os merovíngios não perderam de vista o paralelo.

Durante os anos restantes de sua vida, Clóvis percebeu perfeitamente as ambiciosas expectativas de Roma em relação a ele. Com irresistível eficiência, a fé foi imposta pela espada; e com a sanção e o mandato espiritual da Igreja, o reino franco expandiu-se para o leste e o sul, englobando a maior parte da França e da Alemanha atuais.

Entre os numerosos adversários de Clóvis, os mais importantes foram os visigodos, que aderiram à cristandade ariana. Foi contra o império dos visigodos - que dominava os Pirineus e se estendia pelo norte até Tolouse - que Clóvis dirigiu suas mais assíduas e organizadas campanhas. Em 507 ele derrotou definitivamente os visigodos na Batalha de Vouillé. Logo depois, Aquitânia e Toulouse caíram em mãos francas. O império visigodo ao norte dos Pirineus caiu efetivamente antes do ataque franco. De Toulouse, os visigodos retiraram-se para Carcassonne. Expulsos de Carcassonne, estabeleceram sua capital, e último bastião, na região de Razès, em Rhédae - hoje cidade de Rennes-le-Château.

Clóvis morreu em 511, e o império que ele havia criado se dividiu, - segundo o costume merovíngio, entre seus quatro filhos. Por mais de um século após a morte de Clóvis, a dinastia merovíngia presidiu vários reinos diferentes e freqüentemente rivais, enquanto as linhas de sucessão se tornaram progressivamente mais imbricadas e as pretensões ao trono cada vez mais conflitantes. A autoridade, antes centrada em Clóvis, tornou-se progressivamente mais confusa, mais incipiente, e a ordem secular deteriorou-se. Intrigas, maquinações, raptos e assassinatos políticos tornaram-se cada vez mais comuns. E os chanceleres da corte, ou "mayors do palácio", acumularam mais e mais poder - um fator que contribuiria finalmente para a queda da dinastia.

Cada vez mais desprovidos de autoridade, os últimos governantes merovíngios foram freqüentemente chamados les rois fainéant ["os reis enfraquecidos"]. A posteridade os tem estigmatizado desdenhosamente como monarcas fracos, incapazes, afeminados e maleavelmente dependentes, nas mãos de conselheiros espertos e astuciosos. Nossa pesquisa revelou que este estereótipo não é acurado. É verdade que as constantes guerras, vendetas e conflitos destruidores empurraram vários príncipes merovíngios para o trono em tenra idade, tornando-os facilmente manipuláveis por seus conselheiros. Mas aqueles que atingiam a idade adulta mostraram-se tão fortes e decididos quanto qualquer de seus predecessores. Este parece ter sido o caso de Dagobert II.

Dagobert II nasceu em 651, herdeiro do reino de Austrasie. Com a morte de seu pai em 656, tentativas extravagantes foram feitas para impedir sua subida ao trono. Realmente, o início da vida de Dagobert se parece com uma lenda medieval, ou um conto de fadas. Mas trata-se de uma história bem documentada. Quando seu pai morreu, Dagobert, então com cinco anos de idade, foi raptado pelo mayor do palácio, um homem chamado Grimoald.

As tentativas de encontrar o menino foram infrutíferas, e não foi difícil convencer a corte de que ele havia morrido. Nestas bases, Grimoald engendrou a ascensão de seu próprio filho ao trono, afirmando que este havia sido o desejo do monarca anterior, o falecido pai de Dagobert. O artifício funcionou. Até mesmo a mãe de Dagobert, acreditando na morte do filho, cedeu às ambições do mayor.

Entretanto, Grimoald foi mal sucedido em sua tentativa de matar o jovem príncipe, confiado em segredo ao bispo de Poitiers. O bispo, parece, relutou em matar a criança, finalmente exilada na Irlanda. Dagobert cresceu até a idade adulta no monastério irlandês de Sloane, próximo de Dublin; e lá, na escola ligada ao monastério, recebeu uma educação inexistente na França daquela época. Durante esse período, em algum momento ele teria freqüentado a corte do Grande Rei de Tara, conhecendo os três príncipes de Northumbria, que também estavam sendo educados em Sloane. Em 666, provavelmente ainda na Irlanda, Dagobert casou-se com Mathilde, uma princesa celta. Logo depois mudou-se para a Inglaterra e estabeleceu residência em York, no reino de Northumbria, onde se tornou amigo íntimo de São Wilfrid, bispo de York, que veio a ser seu tutor.

Durante o período em questão, um cisma ainda existia entre as igrejas Romana e Celta, com esta última recusando a autoridade da primeira.

A fim de obter a unificação, Wilfrid tinha como tarefa trazer a Igreja Celta para dentro da Igreja Romana, o que conseguiu já em 664. Mas sua amizade posterior com Dagobert II não era destituída de segundas intenções. Na época de Dagobert, a fidelidade merovíngia a Roma - na forma como foi ditada pelo pacto da Igreja com Clóvis um século e meio antes - era menos fervente do que poderia ser. Sendo Wilfrid um leal aliado de Roma, ele estava ansioso para consolidar a supremacia romana, não somente na Grã-Bretanha, mas também no continente. Se Dagobert retornasse à França e reclamasse o reino de Austrasie, seria interessante assegurar sua lealdade. Wilfrid pode muito bem ter visto no príncipe exilado um possível braço armado da Igreja.

Mathilde, a esposa celta de Dagobert, morreu ao dar à luz, em 670, sua terceira filha. Wilfrid apressou-se em arranjar um novo par para o monarca recentemente viúvo. No ano seguinte, Dagobert casou-se pela segunda vez. Se sua primeira aliança era importante do ponto de vista dinástico, a segunda o era ainda mais. A nova esposa de

Dagobert era Giselle de Razès, filha do conde de Razès e sobrinha do rei dos visigodos. Em outras palavras, a linhagem merovíngia aliou-se à linhagem real dos visigodos. Aí repousam as bases de um império embrionário que teria unido a maior parte da França, estendendo-se através dos Pirineus até as Ardenas. Tal império, além disso, colocaria os visigodos - ainda com fortes tendências arianas - sob o firme controle de Roma.

Dagobert já havia retornado ao continente quando se casou com Giselle. De acordo com a documentação existente, o casamento foi celebrado na residência oficial de Rhédae, ou Rennes-Ie-Château, na igreja de Sainte Madeleine - a estrutura existente no local onde a igreja de Saunière seria erigida depois.

O primeiro casamento de Dagobert tinha produzido três filhas mas nenhum herdeiro masculino. Com Giselle, Dagobert teve mais duas filhas e, por último, em 676, um filho - o infante Sigisbert IV. Dagobert parece ter passado cerca de três anos em Rennes-Ie-Château, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos em seus domínios no norte. Finalmente, em 674, a oportunidade se apresentou. Com o apoio de sua mãe e de seus conselheiros, o monarca longamente exilado se anunciou, reclamou seu reino e foi oficialmente proclamado rei da Austrasie. Wilfrid de York atuou neste acontecimento. Segundo Gérard De Sède, uma figura muito mais evasiva e muito mais misteriosa, a respeito de quem existe muito pouca informação histórica, também atuou: São Amatus, bispo de Sinai, na Suíça.

Uma vez restituído ao trono, Dagobert não foi roi fainéant. Mostrou-se, ao contrário, um merecido sucessor de Clóvis, afirmando e consolidando sua autoridade, domando a anarquia que prevalecia em toda a Austrasie e restabelecendo a ordem. Governou com firmeza, quebrando o controle de vários nobres rebeldes que haviam mobilizado suficiente poder econômico e militar para desafiar o trono.

E em Rennes-Ie-Château ele teria reunido um tesouro substancial, destinado a financiar a reconquista da Aquitânia, que havia escapado das mãos merovíngias quarenta anos antes e se declarado principado independente.

Ao mesmo tempo, Dagobert deve ter representado um grave desapontamento para Wilfrid de York, pois não passou a atuar como o braço armado da Igreja. Pelo contrário, ele parece ter abortado tentativas da Igreja de se expandir em seu reino. Existe uma carta de um irado prelado franco condenando Dagobert por cobrar taxas, por "escarnecer das igrejas de Deus e de seus bispos".

Este não foi o único motivo pelo qual Dagobert parece ter enraivecido Roma. Em virtude de seu casamento com uma princesa visigoda, ele havia adquirido um território considerável, onde hoje é o Languedoc. E pode muito bem ter adquirido mais alguma coisa. Só nominalmente os visigodos eram leais à Igreja de Roma. Tal aliança, na verdade, era extremamente tênue, e uma certa tendência ao arianismo persistia na família real. Existem evidências que sugerem que Dagobert absorveu algo dessa tendência.

Por volta de 679, três anos depois de subir ao trono, Dagobert tinha feito vários inimigos, tanto seculares quanto eclesiásticos. Havia incorrido na hostilidade de alguns nobres vingativos, cuja autonomia restringira. Havia angariado a antipatia da Igreja, cujas tentativas de expansão abortara. Ao estabelecer um regime efetivo e centralizado, havia provocado inveja e alarme em outros potentados francos, governantes de reinos adjacentes. Alguns desses governantes tinham aliados e agentes dentro dos domínios de Dagobert. Um deles era o própriomayor do palácio, Pepin, o Gordo. E Pepin, alinhando-se clandestinamente com os inimigos políticos de Dagobert, não se excluiu nem de traição nem de assassinato.

Assim como a maioria dos governantes merovíngios, Dagobert tinha no mínimo duas capitais. A mais importante delas era Stenay, nas bordas das Ardenas. Próximo do palácio real de Stenay estendia-se um terreno muito arborizado, considerado sagrado havia muito tempo, chamado floresta de Woëvres. Em 23 de dezembro de 679, Dagobert teria ido caçar ali. Considerando-se a data, a caça bem poderia ter sido uma ocasião ritual de algum tipo. Em todo caso, o que se seguiu evoca uma variedade de ecos, inclusive a morte de Siegfried em Nibelungenlied.

Por volta de meio-dia, sucumbindo à fadiga, o rei se deitou para repousar perto de um riacho, ao pé de uma árvore. Enquanto dormia, um de seus serventes - supostamente, um de seus afilhados - aproximou-se sorrateiramente e, agindo sob as ordens de Pepin, atravessou-lhe o olho com uma lança. Os assassinos então retornaram a Stenay com a intenção de exterminar o restante da família, que ali residia. Não sabemos quão bem-sucedidos foram nessa última empreitada. Mas, sem dúvida, o reino de Dagobert e sua família tiveram um súbito fim. Sem perder muito tempo com luto, a Igreja endossou prontamente as ações dos assassinos do rei. Existe até uma carta de um prelado franco a Wilfrid de York, que tenta racionalizar e justificar o assassinato real.

O corpo de Dagobert e sua condição póstuma sofreram ambos uma série de curiosas vicissitudes. Imediatamente depois de sua morte, ele foi enterrado em Stenay, na Capela Real de São Rémy. Em 872 - quase dois séculos depois - foi exumado e removido para outra igreja.

Esta nova igreja tornou-se a Igreja de São Dagobert, pois no mesmo ano o falecido rei foi canonizado - não pelo papa (que até 1159 não detinha sozinho este direito), mas por um Conclave Metropolitano. A razão para a canonização de Dagobert permanece obscura. Segundo uma fonte, isto aconteceu porque suas relíquias teriam preservado as vizinhanças de Stenay contra os ataques dos vikings - embora esta explicação leve a dúvidas, pois não se sabe o que possuíam as relíquias para exercer tal poder. Autoridades eclesiásticas parecem embaraçosamente ignorantes sobre o assunto. Elas admitem que Dagobert, por alguma razão, tornou-se objeto de culto, passando a ter seu dia 23 de dezembro, o aniversário de sua morte - no calendário católico. Mas parecem completamente perdidas sobre a razão de ele ser tão cultuado. É possível, é claro, que a Igreja tenha se sentido culpada por seu próprio papel na morte do rei. A canonização de Dagobert pode, desta forma, ter sido uma tentativa de desagravo. Se isto é verdade, entretanto, não há indicação de por que este ato foi necessário, nem por que se teriam esperado dois séculos.

Nos séculos seguintes, Stenay, a igreja de São Dagobert e talvez as relíquias que continha, foram consideradas de grande importância por várias figuras ilustres. Em 1069, por exemplo, o duque de Lorraine avô de Godfroi de Bouillon - concedeu proteção especial à igreja e colocou-a sob os auspícios da abadia de Gorze, que se situava nas proximidades. Alguns anos mais tarde a igreja foi apropriada por um nobre local. Em 1093, Godfroi de Bouillon mobilizou um exército e sujeitou Stenay a um grande cerco - com o único propósito, parece, de resgatar a igreja e devolvê-la à abadia de Gorze.

Durante a Revolução Francesa, a igreja foi destruída e as relíquias de São Dagobert, assim como muitas outras através da França, foram dispersas. Atualmente, um cérebro contendo uma incisão ritual, que teria sido de Dagobert, está sob custódia de um convento em Mons.

Todas as outras relíquias do rei desapareceram. Mas em meados do século XIX, um documento dos mais curiosos veio à luz. Trata-se de um poema, uma litania em 21 versos, intitulado De sancta Dagobertomartyre prose, induzindo à idéia de que Dagobert havia sido martirizado por ou para alguma coisa. Acredita-se que este poema tenha sido escrito na Idade Média ou mesmo antes.
Sintomaticamente, ele foi encontrado na abadia de Orval.

Rigorosamente falando, Dagobert não foi o último governante da dinastia merovíngia. Na realidade, os monarcas merovíngios retiveram pelo menos a condição nominal por mais três quartos de século. Mas estes últimos merovíngios mereceram o nome derois fainéants.

Muitos deles eram muito jovens. Como conseqüência, eram freqüentemente fracos, peões nas mãos dos mayors do palácio, incapazes de afirmar sua autoridade ou de tomar decisões próprias. Eram realmente um pouco mais que vítimas, e vários foram sacrificados.

Além disso, os últimos merovíngios foram de ramos paralelos, não descendentes diretos de Mérovée e de Clóvis. A linha principal da descendência merovíngia foi deposta com Dagobert II. Para todos os efeitos e propósitos, portanto, o assassinato de Dagobert pode ser considerado o marco do final da dinastia merovíngia. A morte de Childeric III, em 754, foi uma mera formalidade no que diz respeito ao poder dinástico. Como governantes dos francos, a linhagem merovíngia tinha sido efetivamente extinta muito tempo antes.

Quando o poder escapou das mãos dos merovíngios, passou para as mãos dos mayors do palácio, um processo que já havia começado antes do reinado de Dagobert. Foi um mayor do palácio, Pepin, o Gordo, que planejou a morte de Dagobert. Pepin foi seguido de seu filho, o famoso Charles Martel.

Aos olhos da posteridade, Charles Martel é uma das figuras mais heróicas da história da França. Existe certamente algum fundamento nisso. Sob Charles, a invasão moura da França foi abalada na Batalha de Poitiers, em 732. E Charles, em virtude de sua vitória, foi, de algum modo, tanto "defensor da fé" quanto "salvador da cristandade".

Curiosamente, Charles Martel, embora tenha tido muita força, nunca subiu ao trono, que certamente estava ao seu alcance. Na realidade, ele parece ter considerado o trono com um certo temor supersticioso - e, muito possivelmente, como uma prerrogativa especificamente merovíngia. Os sucessores de Charles, que subiram ao trono, tiveram o cuidado de estabelecer sua legitimidade casando-se com princesas merovíngias.

Charles Martel morreu em 741. Dez anos depois, seu filho, Pepin III, mayor do palácio do rei Childeric III, engajou o apoio da Igreja para reclamar formalmente o trono. Os embaixadores de Pepin perguntaram ao papa: "Quem deveria ser rei? O homem que atualmente detém o poder, ou aquele que, embora chamado de rei, não tem nenhum poder?" O papa pronunciou-se em favor de Pepin.

Com apostólica autoridade, ordenou que Pepin fosse coroado rei dos francos, numa traição ao pacto ratificado por Clóvis dois séculos e meio antes. Legitimado por Roma, Pepin depôs Childeric III, confinou o rei em um monastério e, para humilhá-lo, destituiu-o de seus "poderes mágicos'" privando-o de seu cabelo sagrado. Childeric morreu quatro anos depois, e a ocupação do trono por Pepin não foi disputada.

Um ano antes, surgiu um documento crucial, que iria alterar o curso da história ocidental: a Doação de Constantino. Hoje não se duvida que ele foi forjado, fabricado - e de maneira não muito inteligente – no interior da chancelaria papal. Naquela época, contudo, foi considerado genuíno, obtendo enorme influência.

A Doação de Constantino data da suposta conversão de Constantino ao cristianismo, em 312 d.C. Segundo o documento, Constantino doava oficialmente ao bispo de Roma seus símbolos e sua regalia imperiais, que então se tornaram propriedade da Igreja. A Doação alega ainda que Constantino, pela primeira vez, tinha declarado que o bispo de Roma era o "vigário de Cristo", oferecendo a ele a condição de imperador. Como "vigário de Cristo", o bispo teria, supostamente, devolvido a regalia imperial a Constantino, que a usou subseqüentemente com a sanção e permissão eclesiásticas, mais ou menos como um empréstimo.

As implicações desse documento são claras. De acordo com a Doação de Constantino, o bispo de Roma exerceria sobre a cristandade a suprema autoridade secular, além da espiritual. Seria, na verdade, um papa imperador, que disporia como quisesse da coroa imperial, podendo delegar seu poder, no todo ou em parte, a seu bel prazer. Em outras palavras, ele possuía, através de Cristo, o direito indiscutível de criar ou depor reis. Da Doação de Constantino deriva, em última instância, o subseqüente poder do Vaticano em assuntos seculares.

Retirando daí sua autoridade, a Igreja lançou sua influência em nome de Pepin III. Elaborou uma cerimônia na qual o sangue de usurpadores, ou de qualquer um, podia ser declarado sagrado. Esta cerimônia veio a ser conhecida como coroação e unção, no sentido que estes termos passaram a ser entendidos na Idade Média e na Renascença. Na coroação de Pepin, os bispos foram autorizados pela primeira vez a assistir a cerimônia em pé de igualdade com os nobres seculares. E a coroação em si não mais significava o reconhecimento de um rei, ou um pacto com um rei. Agora, ela consistia em nada menos que a criação de um rei.

O ritual de unção também foi transformado. No passado, quando praticado, ele era uma investidura cerimonial, um ato de reconhecimento e ratificação. Agora, contudo, assumia um significado novo. Tomava precedência sobre o sangue, e podia - magicamente, por assim dizer - santificar sangues. A unção tornou-se algo mais que um gesto simbólico. Tornou-se o ato através do qual a graça divina era conferida a um governante. E o papa, ao realizar este ato, tornavase mediador supremo entre Deus e os reis. Através do ritual de unção, a Igreja se reservava o direito de fazer reis. O sangue passava a ser subordinado ao óleo. E todos os monarcas se tornavam subordinados, e subservientes, ao papa.

Em 754, Pepin III recebeu oficialmente a unção em Ponthion, inaugurando assim a dinastia carolíngia. O nome deriva de Charles Martel, embora seja geralmente associado aos governantes carolíngios mais famosos, como Charles, o Grande, Carolus Magnus ou, como ele é mais conhecido, Carlos Magno. Em 800, Carlos Magno foi proclamado imperador do Sacro Império Romano, um título que, em virtude do pacto com Clóvis três séculos antes, deveria ser reservado exclusivamente à linhagem merovíngia. Roma se tornava agora o assento de um império que abraçava toda a Europa ocidental, e cujos governantes só governavam com a sanção do papa.

Em 496 a Igreja se havia ligado de forma perpétua à linhagem merovíngia. Ao sancionar o assassinato de Dagobert, ao inventar as cerimônias de coroação e unção, ao endossar a pretensão de Pepin ao trono, ela traiu o seu pacto. Ao coroar Carlos Magno, a traição não só foi tornada pública, como passou a ser um fato consumado. Nas palavras de uma autoridade moderna:

Assim, nós não podemos saber ao certo se a unção com consagração dos carolíngios tinha a intenção de compensar pela perda de propriedades mágicas do sangue, simbolizadas pelo cabelo longo. Se ela compensava mesmo alguma coisa, era provavelmente a perda de fé ocorrida pela quebra, de forma tão chocante, de um voto de fidelidade. E novamente: "Roma mostrou o caminho ao providenciar, pela unção, um ritual voltado para 'fabricar' reis (...) que de alguma forma limpava a consciência de 'todos os francos'."

Nem todas as consciências, entretanto. Os próprios usurpadores parecem ter sentido, se não culpa, pelo menos uma necessidade aguda de estabelecer sua legitimidade. Para tal, Pepin III, imediatamente após sua unção, casou-se pomposamente com uma princesa merovíngia. E Carlos Magno fez o mesmo.

Carlos Magno, além disso, parece ter sido dolorosamente consciente da traição envolvida em sua coroação. Segundo narrativas contemporâneas, a cerimônia foi cuidadosamente teatral, planejada pelo papa pelas costas do monarca franco. Carlos Magno parece ter ficado surpreso e, ao mesmo tempo, profundamente embaraçado.

Uma coroa foi fabricada clandestinamente. Carlos Magno foi convidado a Roma e então persuadido a assistir a uma missa especial. Quando ele tomou seu lugar na igreja, o papa, sem prevenilo, colocou uma coroa em sua cabeça, enquanto as pessoas o aclamavam como "Carlos, Augustus, coroado por Deus, o grande imperador dos romanos, amante da paz". Nas palavras de um cronista da época, Carlos Magno "tornou claro que ele não teria entrado na catedral naquele dia, embora aquele fosse o maior dos festivais da Igreja, se tivesse sabido antes o que o papa estava planejando fazer".

Qualquer que tenha sido a responsabilidade do papa no assunto, o pacto com Clóvis e com a linhagem merovíngia foi vergonhosamente traído. E todas as investigações indicam que essa traição, embora ocorrida há mais de 1.100 anos, continua a exasperar o Monastério do Sinai. Mathieu Paoli, o pesquisador independente citado no capítulo anterior, chegou à seguinte conclusão:

Para eles [o Monastério do Sinai], a única nobreza autêntica é a de origem visigótica-merovíngia. Os carolíngios, e então todos os outros, são usurpadores. De fato, eles não eram mais que funcionários do rei, encarregados de administrar terras. Depois de transmitir hereditariamente seu direito de governar essas terras, pura e simplesmente tomaram o poder para si mesmos. Ao consagrar Carlos Magno no ano 800, a Igreja perjurou, pois no batismo de Clóvis havia realizado uma aliança com os merovíngios, que haviam feito da França a filha mais velha da Igreja.

Com a morte de Dagobert II em 679, a dinastia merovíngia efetivamente terminou. Com a morte de Childeric III em 755, os merovíngios aparentemente desapareceram por completo da história.

Segundo os Documentos do Monastério, contudo, a linhagem merovíngia sobreviveu, tendo sido perpetuada até hoje a partir do infante Sigisbert I, filho de Dagobert com sua segunda esposa, Giselle de Razès.

Não existem dúvidas de que Sigisbert existiu e que era herdeiro de Dagobert. Segundo todas as fontes exteriores aos Documentos do Monastério, entretanto, não se sabe o que aconteceu com ele. Certos cronistas têm aceito tacitamente que ele foi assassinado juntamente com seu pai e os outros membros da família real. Uma narrativa muito duvidosa assegura que ele morreu em uma caçada, por acidente, um ano ou dois após a morte do pai. Se isto for verdade, Sigisbert deve ter sido um caçador bastante precoce, pois ele não tinha mais do que três anos na época.

Não existe nenhum registro da morte de Sigisbert. Tampouco existe qualquer registro - à parte as evidências dos Documentos do Monastério - de sua sobrevivência. Todo o assunto parece ter sido perdido nas névoas do tempo, e ninguém parece interessar-se muito por isso - exceto, é claro, o Monastério do Sinai, que parece possuir informações não disponíveis em outras fontes, ou deliberadamente suprimidas, ou consideradas desimportantes demais para merecer investigação.

Não é de se surpreender que nenhuma narrativa do destino de Sigisbert tenha sido filtrada até chegar a nós. Nenhuma narrativa sobre o próprio Dagobert esteve acessível ao público até o século XVII. Em algum momento, durante a Idade Média, foi feita uma tentativa sistemática de apagar Dagobert da história, de negar que ele um dia tenha existido. Hoje Dagobert II pode ser encontrado em qualquer enciclopédia. Mas não há nenhum reconhecimento de sua existência até 1646. Qualquer lista ou genealogia de governantes franceses compilada antes desse ano simplesmente o omite, saltando, a despeito da flagrante inconsistência, de Dagobert I para Dagobert III, um dos últimos monarcas merovíngios, que morreu em 715. Só em 1655 Dagobert foi reintegrado em listas aceitas de reis franceses.

Considerando esse processo de esquecimento proposital, a escassez de informação sobre Sigisbert não deveria constituir nenhuma surpresa. Qualquer informação existente deveria ter sido deliberadamente suprimida.

Por que Dagobert II deveria ser suprimido da história? O que estaria sendo ocultado? Por que se deveria negar até mesmo a existência de um homem? Uma possibilidade seria, é claro, a de negar assim a existência de seus herdeiros. Se Dagobert nunca existiu, Sigisbert tampouco poderia ter existido. Mas por que deveria ser tão importante, muito mais tarde, no século XVII, negar que Sigisbert um dia existira?

A menos que ele tivesse realmente sobrevivido e que seus descendentes fossem considerados uma ameaça.

Tínhamos a impressão de estar lidando com algum tipo de pacto de encobrimento. É evidente que interesses velados seriam prejudicados, caso a sobrevivência de Sigisbert fosse tornada pública. No século IX e talvez já no tempo das Cruzadas, esses interesses pareciam ser a Igreja Romana e a linhagem real francesa. Mas por que o assunto continuaria a ter importância na época de Luís XIV? Nessa época, este deveria ser um ponto meramente acadêmico, pois três dinastias francesas tinham ido e vindo, e o protestantismo tinha quebrado a hegemonia romana. A menos que houvesse algo de muito especial no sangue merovíngio. Não, é claro, propriedades mágicas, mas algo mais - algo que mantivesse sua potência explosiva mesmo depois do fim das superstições sobre o sangue mágico.

http://artigonal.blogspot.com.br/2015/02/a-lenda-dos-merovingios.html

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