Desde
a descoberta dos pergaminhos do Mar Morto, há mais de quarenta anos, essa
pergunta está presente. Escritos pelos essênios, uma seita religiosa anterior a
Cristo que tinha doutrina semelhante à dos cristãos, só agora as autoridades de
Israel vão permitir a cientistas de todo o mundo o acesso aos documentos.
Primavera
de 1947. Três meninos pastores beduínos haviam levado seus carneiros e cabras
para beber no oásis de Ain Feshka, a 15 quilômetros da cidade bíblica de
Jericó, na Cisjordânia, território jordaniano hoje ocupado por Israel. Enquanto
os animais matam a sede, os meninos brincam pelas cavernas que sulcam a
paisagem de precipícios, localizada 400 metros abaixo do nível do mar, perto da
costa norte do Mar Morto. Um dia normal e corriqueiro, não fosse o estrondo
estafante que os três ouvem depois de jogarem pedras em uma das grutas. Eles
descem à caverna e descobrem dez grandes jarros de barro, de aparência antiga:
oito vazios, um cheio de terra e, no último finalmente, encontram um maço de
velhos rolos de pergaminho.
O
achado, sem nenhum valor para seus pequenos proprietários, não demoraria a
chegar às mãos de estudiosos estabelecidos na região. E em abril do ano
seguinte circula a notícia: pela primeira impressão dos peritos, aqueles
pergaminhos amarelecidos, comprados a troco de umas poucas moedas, continham
escritos em hebraico e aramaico a língua semítica usada por Cristo ,
provavelmente com 2 000 anos de existência. Deviam, portanto, datar dos tempos
de Jesus. No meio dos estudiosos da Bíblia cresce a expectativa, já que os
estudos dos Rolos do Mar Morto, como ficaram conhecidos os documentos, poderiam
proporcionar novas descobertas sobre a vida religiosa dos judeus e o nascimento
do cristianismo.
Passaram-se,
desde então, 45 anos e novos fragmentos de textos foram descobertos nas
centenas de cavernas próximas a Ain Feshka. Entre eles, restos de 23 dos 24
livros da versão do Velho Testamento até hoje usada pelos judeus a exceção é o
Livro de Esther , além de obras antes só conhecidas em traduções gregas,
latinas ou eslavas antigas, escritos inéditos com comentários sobre profetas,
salmos que não constam da Bíblia e cânticos. Foi também encontrada uma série de
textos que descrevem uma seita judaica misteriosa, de imediato associada a um
nome que transformou os pergaminhos num manancial inesgotável de especulações
históricas e religiosas: essênios.
O
nome dessa seita já esteve em circulação muito tempo atrás. Nos primeiros anos
depois de Cristo, autores judeus como o historiador Flavius Josephus (38-100
d.C.), um dos primeiros a narrar a diáspora de seu povo após a destruição do
Templo de Jerusalém pelos romanos, em 70 d. C., ou o filósofo religioso Philo
(10 a.C.- 5O d.C.), que vivia no Egito na época de Jesus, fizeram alusões a
eles. O naturalista romano Plínio, o Velho (23-79 d.C.), também falou de um
contato com essa comunidade em sua viagem à Judéia.De acordo com as fontes
antigas, eles viviam numa comunidade monástica semelhante a uma ordem
religiosa, trajavam hábitos brancos, praticavam o celibato e estudavam o poder
medicinal das ervas e a astrologia. Até a descoberta dos rolos do Mar Morto,
porém, não existiam documentos que atestassem sua existência, pois os essênios
não são mencionados nem no Novo Testamento, nem nos textos judaicos antigos.
Contudo, como queria o acaso, as cavernas em
que os pergaminhos foram encontrados ficam apenas a um pulo de Khirbet Qumran
ruínas de Qumran , em árabe , sobre cujas origens estudiosos matutavam há muito
tempo. Lá não havia mais do que um monte de pedras, uma cisterna, vestígios de
um aqueduto, um enorme cemitério e muitas teorias, que viam no local desde a
cidade bíblica de Gomorra até uma fortaleza romana.Hoje, não é pequeno o número
de especialistas que afirmam que ali ficava a pátria essênia. Mas o mistério
está longe do fim. Quanto mais as peças se encaixam, mais emaranhado fica o
quebra-cabeça. A começar pelo nome "essênio", que também não aparece
nos rolos do Mar Morto. Alguns peritos arriscam explicar a curiosidade: seria
uma alcunha usada por rivais. Provavelmente, deriva do aramaico e significa
algo como curandeiro. Philo chamava os adeptos da seita de therapeutoi, ou
"terapeutas" em grego. Flavius Josephus escreveu que a arte de curar
era especialidade deles.
A
idade dos fragmentos não é mais um problema: os estudos espectrométricos
realizados pela equipe da Escola Superior Técnica Federal de Zurique indicam
que os mais recentes são originários do final do primeiro século da nossa era,
enquanto os mais antigos retrocedem ao segundo século antes de Cristo. O que
significa que os essênios surgiram como comunidade religiosa 200 anos antes dos
cristãos.
Resta
agora saber de onde vieram.Muitos historiadores acreditam que tudo começou em
197 a.C., quando a Judéia foi incorporada ao reino grego dos Selêucidas e
passou a ser helenizada, cultural e religiosamente. Um processo que atingiu seu
ápice em 167 a.C. com o imperador Antíoco IV: ele colocou uma estátua de Zeus
no Templo de Jerusalém. Formou-se então o movimento de resistência comandado
por Judas Macabeu, que três anos depois expulsou os gregos e restaurou o
judaísmo.Teria sido durante esse período sangrento que surgiu a seita.
Inicialmente integrados à luta de Macabeu, logo eles se isolariam por
divergências em torno da escolha do sumo sacerdote para o templo restabelecido.
Os indícios arqueológicos parecem comprovar
essa descrição: as construções de Qumran, hoje em ruínas, foram edificadas em
meados do século II a.C. As pedras são mudas, porém, e informam pouco sobre as
convicções religiosas de seus antigos habitantes. Por isso, os pesquisadores
agora apostam suas fichas nos fragmentos achados nas cavernas vizinhas. Embora
não usassem a palavra "essênio", os escribas da seita cunharam
autodenominações que aparecem fartamente e ajudam a entender sua crença. As
mais freqüentes são Filhos da Luz, Guardiões do Testamento e Filhos de Sadoc,
sumo sacerdote do tempo do rei Salomão. Dai o rompimento com os macabeus: como
os essênios se consideravam descendentes de Sadoc, eles teriam exigido que o
cargo fosse ocupado por um herdeiro sangüíneo da honorável figura, o que,
obviamente, não ocorreu.
Os
textos dos Filhos da Luz falam também daquele que seria o fundador da seita e
autor de alguns dos escritos: o Mestre da Justiça, chamado por alguns de Mestre
Verdadeiro ou Mestre da Retidão. Sua identidade, entretanto, é um dos segredos
mais bem guardados da Antigüidade. Quem pronunciasse seu nome era punido com a
morte, segundo Flavius Josephus. O mesmo valia para o nome de seu inimigo
figadal, chamado Sacerdote Ateu, provavelmente um sumo sacerdote não
descendente de Sadoc.Certo é que os essênios devem ter participado ativamente
das mudanças que abalaram a Judéia nos anos que precederam Cristo. O principal
lance na época era a presença da superpotência romana, que reduziu o país a
protetorado imperial. É bem verdade que, para manter a paz, os ocupantes deram
liberdade religiosa à população fanaticamente monoteísta. Mas mesmo com essa
generosidade o país se encontrava conturbado por lutas entre os que toleravam Roma
e os contrários a ela. Os primeiros eram os fariseus reformistas religiosos
interessados numa interpretação mais flexível da lei de Moisés. Graças ao Novo
Testamento, sabe-se que os seus desafetos eram os saduceus e os
zelotes.Saduceu. Transportada para o hebreu a palavra soa mais ou menos como
zadoki, isto é, sadoquitas.
O
Talmude, coletânea farisaica de leis, deriva esse nome de Sadoc. Como os
essênios se auto denominavam sadoquitas, será que eles e os saduceus pertenciam
ao mesmo grupo? A resposta é um enérgico talvez. No último século antes da
destruição do templo, foram os saduceus que nomearam a maioria dos sumos
sacerdotes. E se houve ligação entre eles, isso deve ter ocorrido no primeiro
século antes da era cristã. Qumran seria, então, um seminário para sacerdotes
saduceus, teoria agora fortalecida por um dos escritos do Mar Morto. Conhecido
como Rolo do Templo, por se ocupar de ofícios religiosos altamente apropriado
para seminaristas, por sinal , esse pergaminho foi datado entre 79 a.C. e 1 d.C.
Exatamente o período de que se fala aqui. Quanto aos zelotes, sua fama era de
um apaixonado grupo nacionalista. que resistiu ferozmente aos romanos. É
provável que isso agora seja revisto. Os estudiosos acreditam que os
"fanáticos" esta é tradução ao pé da letra do nome zelote não foram
um grupo político isolado nos tempos de Jesus. Acredita-se que a expressão
servisse para designar todos os militantes da causa anti-romana, fosse qual
fosse seu partido e os essênios também o eram.
Esse
problema do fanatismo na Judéia começou durante o governo de Herodes, o Grande,
que reinou de 37 a.C. até 4 a.C. sob os auspícios romanos. Herodes costumava
nomear para a função de sumo sacerdote do templo qualquer um que quisesse
favorecer, coisa que os fariseus aceitavam de bom grado por acharem que os
sacerdotes dispunham de poderes excessivos. Entre saduceus e essênios, no
entanto, desenvolveu-se, através dos zelotes ou "fanáticos", um
movimento radical fundamentalista como se diria hoje para combater a interferência
pouco ortodoxa do governante.
Os
arqueólogos encontraram provas que sustentam a teoria de que não poucos
essênios viraram zelotes fundamentalistas. Rolos de escritos da seita essênia
foram desenterrados na fortaleza de Masada, ao sul de Qumran, onde quatro anos
após a destruição do Templo de Jerusalém um grupo zelote ainda resistia às
tropas romanas. Alguns até supõem que Qumran tenha sido transformada em
fortaleza zelote nesses anos difíceis.
Acompanhar
essa história torna quase irresistível a tentação de relacionar os antecedentes
do cristianismo com o essenismo. A começar pela crença no messias. Nos escritos
de Ain Feshka encontram-se várias referências à chegada de um ou mesmo vários
messias.Uma ansiedade provavelmente mais profunda nos adeptos radicais da
seita, em busca de um herói que os libertasse dos estrangeiros.
O
profeta João Batista, por sua vez, parece particularmente ligado aos adeptos da
seita. Ele não só desempenhava sua função no deserto onde se localiza Qumran,
como também ministrava um rito batismal foi ele quem batizou Cristo que lembra
muito uma cerimônia de purificação através da água praticada pelos essênios:
arqueólogos encontraram nas ruínas restos de uma vasta instalação para banhos.
Além disso, João Batista morreu decapitado, punição típica para os zelotes
messiânicos.O número de ligações entre essênios e cristãos em grego christianos
significa messianista não fica por aí. A Bíblia cristã, por exemplo, é
marcadamente antifarisaica. Lembrem-se: os fariseus toleravam os romanos que crucificaram
Jesus. Nela, encontra-se a proibição de Cristo em relação ao divórcio uma norma
sem antecedentes no judaísmo fariseu.
Nos
rolos essênios, porém, há uma interdição semelhante. A prática da vida
comunitária e a abolição da propriedade são também traços em comum de cristãos
e essênios. Trechos inteiros do Novo Testamento, de fato, parecem eco dos
textos de Qumran. Um deles é a carta de Tiago, tido por alguns como irmão de
Jesus Cristo.
Hoje,
não são poucos os que vêem a vida nos primórdios do cristianismo como uma
doçura amena, uma novela açucarada. Nada mais distante da realidade. Os
primeiros cristãos eram radicais, e às vezes puniam a desobediência com a
morte, como se deduz da história dos apóstolos. Tudo isso tem paralelismo nos
essênios. Não se deve esquecer outra importante identidade: segundo os Rolos do
Mar Morto, o auge das reuniões da seita tinha como marca registrada uma ceia de
pão e vinho.
E
tem mais no século VIII, o patriarca cristão de Bizâncio Timoteu I menciona em
uma carta que um caçador árabe havia descoberto velhos manuscritos hebraicos
perto de Jericó. Eles foram enviados a Jerusalém, copiados e postos em
circulação. Durante sua estada no Cairo, o estudioso judeu Solomon Schechter
(18471915) visitou o depósito de uma sinagoga e ali encontrou um texto hebreu,
copiado no século XII, que continha as normas de conduta de uma seita
desconhecida. Exatamente o mesmo escrito foi encontrado em Qumran. Com isso
fica claro: textos essênios ainda eram copiados no século XII.
Outra
fonte de idéias essênias poderia ser o islamismo. Que Maomé manteve contato com
tribos judaicas na Península Arábica, disso não se tem dúvida. Mas alguns
pesquisadores já desconfiam que se tratava, então, de membros de uma seita de
judeus que haviam fugido de Jerusalém depois da conquista romana. Seu
argumento: a linguagem do livro sagrado do Islã, o Alcorão, vez por outra se
assemelha à dos textos de Qumran.
Por
enquanto, é até aqui que vão as pistas dos misteriosos essênios, que, como
parece, deixaram a terra sem nenhum adeus. Mas quem sabe quando será encontrada
a próxima caverna cheia de manuscritos deles? Talvez antes do que se
pensa.
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