domingo, 11 de outubro de 2020

O MISTÉRIO DO PAPIRO DA MULHER DE JESUS CONTÍNUA SEM SER REVELADO

Para os que estão há anos analisando textos evangélicos não é novidade que Cristo estivesse casado e certamente fosse pai

Um fragmento de papiro do século IV, escrito em copta, a língua do antigo Egito, que já causou um grande reboliço ao ser descoberto, em 2012, acaba de ser considerado autêntico pela prestigiosa Escola de Teologia da Universidade Harvard, pela Universidade Columbia e pelo MIT.

A notícia da suposta autenticidade desse documento, embora não de seu conteúdo, atraiu uma enorme atenção dos acadêmicos depois de ele ser exposto em público numa conferência sobre língua copta que acontece em Roma, porque nele, e pela primeira vez, Jesus de Nazaré fala da “minha mulher”, o que significaria que era casado. Mas, nesse caso, quem era ela?

O papiro gnóstico deve seu nome (Evangelho da Esposa de Jesus, embora não revele sua identidade) à pesquisadora norte-americana Karen King, que está convencida de que se trata de Maria Madalena, mas só agora ele foi confirmado como original, coincidindo com o debate aberto pelo papa Francisco ao afirmar que a Igreja precisa de uma “nova teologia da mulher”.

Para nós, que há anos analisamos os textos evangélicos da Igreja, sejam os canônicos ou os apócrifos, sobretudo os gnósticos, não é nenhuma novidade que Jesus foi casado e certamente teve filhos, pois seria algo muito anormal na sociedade judaica daquela época que não fosse assim.

Nada mais precioso para um judeu do que a prole. A ponto de que, na Bíblia, Deus permite aos patriarcas, cujas esposas eram estéreis, que se deitassem com uma escrava que lhes desse um filho.

Os cristãos sempre se perguntaram por que os Evangelhos nunca falam da família de Jesus. E a resposta dos pesquisadores e historiadores foi sempre a mesma: porque para os judeus ter família era algo totalmente normal, tão normal que nem se mencionava. Todos os apóstolos, por exemplo, eram casados, e nos textos sagrados nunca se fala de suas mulheres e filhos. Só uma vez se nomeia de passagem a sogra de Pedro, a quem Jesus curou de uma doença. Mais nada.

Outro dos motivos é que a Igreja, já dos primórdios do cristianismo, rechaçou como “não canônicos” os importantes evangelhos gnósticos, um movimento filosófico e teológico que influiu sobre as primeiras comunidades cristãs e que se contrapunha à teologia da cruz e da redenção, de Paulo de Tarso. Neles, diz-se que Jesus era casado.

Ao final se impôs, já no século II, a teologia de Paulo. A Igreja queimou os evangelhos gnósticos, exceto um punhado deles, escondidos que foram por alguns monges e encontrados por pastores em 1945, no Egito, dentro de ânforas de barro lacradas, e que só agora começam a ser estudados a fundo.

Nesses textos, considerados hereges, se diz que a “mulher de Jesus” era Maria Madalena, a quem a Igreja confundiu durante séculos com uma prostituta, até que precisasse se corrigir, alterando o texto evangélico da liturgia da santa.

Nessa literatura gnóstica, como no papiro, Madalena, que poderia não ser judia, aparece como a “esposa” e “discípula” de Jesus. Trata-se de uma mulher culta e ilustrada, a quem Jesus “confiava segredos” que ocultava dos demais apóstolos, algo que despertava ciúmes em Pedro, que chega a se queixar publicamente disso ao Mestre. Existe, inclusive, o Evangelho de Maria Madalena.

Esses textos contam que Jesus “beijava a boca” de Madalena, algo que nessa filosofia tinha um duplo significado: amor sexual e transmissão de sabedoria, já que, segundo os gnósticos, a verdade se transmitia através da boca.

O papiro não nos diz quem era essa mulher de Jesus. Quem revela esse enigma com uma simples análise hermenêutica são os quatro Evangelhos canônicos, que nos contam que, durante a crucificação, Maria Madalena estava na primeira fila, enquanto todos os discípulos homens ficaram escondidos e com medo.

Madalena aparece também ungindo o cadáver do Jesus. E no domingo de Páscoa é ela a que vai de novo ao lugar da crucificação, e é para ela que aparece ressuscitado, a quem abraça com tal força que o leva a lhe dizer: “Já chega”.

O Pai e Doutor da Igreja, são Tomás de Aquino, perguntava-se, incrédulo, por que Jesus, ao ressuscitar, apareceu a Madalena e não a Pedro e aos seus apóstolos. Isso porque, além do mais, a mulher judia não era fiável nem podia atuar como testemunha em um processo judicial. Por isso, Pedro “não acredita” quando ela vai lhe dizer que Jesus havia ressuscitado, e ele mesmo se dirige ao sepulcro para comprovar isso, encontrando-o vazio.

Os quatro evangelistas colocam Maria Madalena aos pés da cruz. Os três sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) a citam junto com “outras mulheres”, mas o Evangelho de João, que foi o último e mais recente, 90 anos depois da morte de Jesus, e que conhecia bem os outros três, cita apenas Madalena. Mais ainda, oferece detalhes que unicamente ela poderia ter lhe contado em vida, como sua saída no domingo para o Gólgota “na alvorada”, quando “ainda estava muito escuro”, e que diante do sepulcro vazio “se pôs a chorar”.

E quando se encontram Jesus ressuscitado e ela ambos se tratam com uma familiaridade que na cultura judaica de então só se permitia a dois cônjuges, e nem sequer em público.

Quando o escritor José Saramago, Nobel de Literatura, leu meu livro Madalena, o Último Tabu do Cristianismo (Objetiva), no qual se defende essa tese, ele comentou com Pilar, sua esposa: “Se apareceu para ela, antes que a Pedro e até mesmo à sua mesma mãe, claro que era sua mulher”, e acrescentou: “Pilar, se quando eu morrer pudesse ressuscitar, a quem iria aparecer primeiro se não a ti?”.

O papiro copta encontrado em que Jesus fala da “minha mulher”, se for realmente autêntico, como parece, não faria mais do que corroborar o que os teólogos biblistas defendem há mais de 50 anos: que Jesus foi casado com a gnóstica Maria Madalena, a quem aparece antes mesmo que aos apóstolos, que precisaram se resignar a saber por ela da importante noticia da ressurreição.

El País

A IGREJA CONTINUA ESCONDENDO O SEGREDO DE MARIA MADALENA


Por que os primeiros cristãos não gostavam da imagem de Jesus crucificado

O recém-estreado filme Maria Madalena, de Garth Davis, mesmo prescindindo do seu valor cinematográfico, serviu para recordar que a Igreja Católica continua mantendo o segredo sobre a figura da mulher mais citada nos evangelhos, mais inclusive que a mãe de Jesus. Foram necessários 1.400 anos para que Roma acabasse aceitando que Maria Madalena não foi nem prostituta. E se tivesse sido a mulher de Jesus? E se não tivesse sido nem sequer judia, e sim seguidora da filosofia gnóstica? E se tivesse sido a fundadora do primeiro cristianismo? O medo da Igreja de ressuscitar a identidade e importância de Madalena em sua fundação é compreensível, já que isso significaria revisar a história desde a suas origens, assim como a teologia da sexualidade e o papel da mulher na hierarquia do catolicismo, onde continua relegada a um segundo plano. Teria algum sentido o celibato obrigatório se até Jesus era casado?

É compreensível o susto que a Igreja levou quando, em 1945, foram descobertos em Nag Hammadi, no Egito, um punhado de manuscritos de evangelhos gnósticos do século IV que tinham desaparecido porque a Igreja os destruíra ao considerá-los apócrifos. Neles fica clara, por exemplo, a estreita relação sentimental e espiritual entre Jesus e Madalena. Tão íntima que incomodava os apóstolos homens. Pedro chega a se zangar e pergunta ao mestre porque lhes oculta “segredos que só a ela revela”. E sentencia: “Que Maria saia de entre nós, porque as mulheres não são dignas da vida”.

Aqueles manuscritos gnósticos impressionaram tanto o psicanalista Carl Jung que ele se empenhou até conseguir comprar um deles. Que Jesus e Madalena fossem conhecedores das doutrinas gnósticas e as discutissem entre si é algo revelado num desses manuscritos, quando se diz que Jesus “a beijava na boca”. Não se tratava, entretanto, só de um gesto de afeto. Beijar-se na boca era, para os gnósticos, a forma de transmitir sabedoria.

Hoje sabemos que na aurora do cristianismo houve o choque entre duas teologias, a dos gnósticos, protagonizada pelo grupo de Maria Madalena, e a do apóstolo forasteiro, Paulo de Tarso. Na teologia gnóstica não se fazia distinção hierárquica entre homem e mulher, e se ensinava que o mal não é fruto do pecado original, como continua defendendo a Igreja de hoje, mas sim da ignorância. O que salva para os gnósticos é a sabedoria.

O medo da Igreja de ressuscitar a identidade e importância de Madalena em sua fundação é compreensível, já que isso significaria revisar a história desde a suas origens

Se tivesse triunfado a corrente gnóstica, que apoiavam não poucos dos primeiros bispos, a Igreja hoje seria totalmente diferente, já que nela a mulher teria o papel fundamental que teve no primeiro século depois da morte de Jesus. A teologia misógina de Paulo e a contaminação com o poder romano fizeram com que a mulher acabasse marginalizada dentro do cristianismo.

Não é preciso, entretanto, ir aos evangelhos gnósticos para demonstrar a liderança de Madalena já durante a vida de Jesus e depois da sua morte. Basta uma análise hermenêutica dos quatro evangelhos oficiais da Igreja para constatar como Jesus, contra toda a tradição judia, tinha escolhido uma mulher como a depositária da sua mensagem. Madalena aparece, de fato, nos quatro evangelhos canônicos como sua confidente, e ela está consciente da sua relação especial com o profeta.

O momento-chave que revela a importância de Madalena para Jesus é o da cena da crucificação e ressurreição. É narrada pelos quatro evangelistas, mas o que oferece detalhes que só ela podia conhecer é o Evangelho de João, considerado, curiosamente, o mais gnóstico e do qual se chegou a pensar que poderia ter sido escrito por Madalena.

Aparecem nesse quarto evangelho, por exemplo, detalhes como que Maria Madalena foi ao local da crucificação “na alvorada” e que “ainda estava escuro”. “Jesus”, chama ela, demonstrando intimidade, e o abraça e o chama pelo nome carinhoso de Rabbuni, que em hebraico quer dizer “meu bom mestre”. Jesus aparece a ela antes que aos apóstolos homens e antes que à sua própria mãe. Tomás de Aquino, doutor da Igreja, torturava-se por não entender que Jesus aparecesse a Madalena, uma mulher, e não a Pedro, considerado o cabeça dos apóstolos. Ainda mais que na época as mulheres não eram nem levadas em conta nos processos judiciais.

Lembro que o Nobel de Literatura, ateu, José Saramago, depois da leitura do meu livro Madalena: o Último Tabu do Cristianismo, traduzido no Brasil pela editora Objetiva, comentou com sua mulher, Pilar, que o aparecimento de Jesus a Madalena antes que a qualquer outra pessoa era a prova de que ela era sua mulher. “Se eu, depois de morrer, pudesse ressuscitar, é evidente que apareceria para você antes do que para qualquer um”, disse-lhe, meio de brincadeira, meio sério.

A Igreja, como em parte está fazendo o Papa Francisco, precisa rever suas origens para eliminar o lastro de machismo com o qual foi contaminada, para voltar a ser o que foi em seus primórdios: a Igreja de Madalena

A Igreja, como em parte está fazendo o Papa Francisco, precisa rever suas origens para eliminar o lastro de machismo com o qual foi contaminada, para voltar a ser o que foi em seus primórdios: a Igreja de Madalena, mais que a de Paulo, menos autoritária e masculina, em que a mulher tinha um papel institucional do qual foi sendo despojada até que se transformasse numa Igreja de homens com medo da mulher.

Os gnósticos, mais que a teologia de Paulo, do pecado e da cruz, davam grande importância ao conhecimento intuitivo e à poesia, à força da sabedoria. Uma força poética que pode ser apreciada no lindo poema que aparece no livro gnóstico O Trovão: a Mente Perfeita, que curiosamente evoca o começo do evangelho de João:

Porque sou a primeira e a última

Eu sou a honrada e a rejeitada.

Eu sou a prostituta e a sagrada.

Eu sou a esposa e a virgem. [...]

Eu sou a estéril,

e muitos são os filhos dela. [...]

Sou o silêncio que é incompreensível. [...]

Sou a pronúncia do meu nome.

Em seguida a Igreja acabou adquirindo o medo da sexualidade, o desprezo pela mulher, o pecado, a cruz e o inferno. Quando visitei pela primeira vez em Roma algumas catacumbas cristãs, me chocou observar que nas primeiras pinturas que conhecemos do cristianismo primitivo, do final do século II, não aparece nem uma vez Jesus crucificado. O cristianismo de Madalena não gostava do símbolo da cruz. As figuras representavam Jesus como o bom pastor ou jantando com seus apóstolos. Em algumas figuras, mostradas apenas a especialistas bíblicos, já aparecem mulheres vestidas de bispas.

Aquela igreja da alegria, da fraternidade, da ternura, do perdão e da esperança, sem distinção entre homens e mulheres, pobres e ricos, ainda está à espera de uma nova ressurreição cristã. O papa Francisco acaba de chamar Madalena de “a apóstolo dos apóstolos”. Será o primeiro gesto de reconhecimento do primeiro cristianismo feminino? 

El País


MARIA MADALENA ERA UMA MULHER RICA , NÃO UMA PROSTITUTA

Investigação em jazida na cidade de Magdala revela informações que ajudam a reconstruir seu perfil

Maria Madalena foi “uma mulher rica, influente e crucial” na vida de Jesus Cristo. Esta é uma das conclusões da pesquisadora Jennifer Ristine em Mary Magdalene: Insights From Ancient Magdala (“Maria Madalena, percepções da antiga Magdala”), um livro lançado em 22 de julho que busca revelar os mistérios da mulher que a Igreja Católica tachou durante séculos como adúltera e prostituta. A integração das referências bíblicas e históricas com os recentes descobrimentos arqueológicos feitos na cidade de Magdala (atual Migdal, Israel), onde se acredita que nasceu, permitiram a Ristine reconstruir parte de seu perfil.

“Durante os tempos de Maria Madalena, Magdala já era um povoado próspero na indústria pesqueira”, afirma Ristine, diretora do Instituto Madalena, numa entrevista por e-mail. As primeiras escavações foram feitas nos anos setenta. Mas foi em 2009 que os Legionários de Cristo compraram um terreno na região e “descobriram a parte norte do povoado de Magdala”. “Encontraram uma sinagoga do século I, uma representação do templo de Jerusalém em pedra [a pedra de Magdala], banhos de purificação ritual, residências e um porto”, explica Ristine.

Mas era ou não uma prostituta? Ristine considera que houve “muitas más interpretações sobre a vida de Maria Madalena”. Os achados arqueológicos da cidade bíblica de Magdala, hoje um sítio arqueológico com mais de 2.000 anos de antiguidade, sugerem que se tratava de um enclave rico. E, ao integrar neste contexto as referências bíblicas, pode-se deduzir que Maria Madalena era “uma mulher rica, de um povoado economicamente bem posicionado”, e não necessariamente uma prostituta, acrescenta a autora. Essa ideia se reafirma, por exemplo, nos versículos de Lucas 8:1-3: “Depois disso, Jesus andava pelas cidades e aldeias anunciando a boa nova do Reino de Deus. Os Doze estavam com ele, como também algumas mulheres que tinham sido livradas de espíritos malignos e curadas de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes; Susana e muitas outras, que o assistiram com as suas posses”.

A Igreja Católica canonizou Madalena, que é santa desde 2016 (com festa litúrgica em 22 de julho), quando o papa Francisco a nomeou apostola apostolurum, “a apóstolo dos apóstolos” – não por acaso, segundo a Bíblia, foi a primeira a ver Jesus ressuscitado. E, entretanto, foi o papa Gregório Magno, no ano 591, um dos introdutores do qualificativo de “prostituta” quando em sua homilia 33 afirmou: “Aquela a quem o evangelista Lucas chama de mulher pecadora é a Maria da qual são expulsos os sete demônios, e o que significam esses sete demônios senão todos os vícios?” Com essa afirmação, o sumo pontífice fez uma fusão de três marias: Maria, a pecadora, “que unge os pés do Senhor”; Maria, a de Magdala, liberada por Jesus de sete demônios, e entre as mulheres que o assistem; e Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro. “A Igreja do Oriente acredita que são três mulheres diferentes, enquanto a Igreja do Ocidente crê firmemente identificá-las como a mesma mulher, Maria Madalena”, diz Jennifer Ristine.

Mas não foi Gregório Magno o único responsável. Segundo a pesquisadora, alguns autores a associaram a uma mulher mencionada no século II no Talmud, chamada Miriam Megaddlela, que significa “Maria de cabelo trançado”. “Na comunidade judaica, esse título era adjudicado a uma mulher de má reputação, uma adúltera ou uma prostituta”, acrescenta.

Independentemente de ter ou não sido meretriz, um estigma do qual os movimentos feministas tentam livrá-la, “Maria Madalena foi uma mulher influente tanto econômica como socialmente; economicamente porque era uma mulher acomodada, e socialmente porque, apesar de crescer e viver numa sociedade religiosa estrita, decide romper esquemas e seguir Jesus”, considera Ristine, para quem a mulher de Magdala é acima de tudo “um modelo de liderança para as mulheres”.

E ainda resta muito a descobrir sobre ela. Só foram escavados 15% da antiga Magdala, de modo que, segundo Jennifer Ristine, futuros achados arqueológicos podem ajudar a revelar mais detalhes sobre o passado religioso da cidade natal de Maria Madalena, esclarecendo fatos e verdades de uma das personagens mais misteriosas dos Evangelhos.

brasil.elpais.com

MAIS FIEL RETRATO DE MARIA MADALENA

 

Novo livro e longa-metragem que estreia esta semana no Brasil revisitam uma das mais importantes personagens da Bíblia: a mulher que foi descrita como pecadora, arrependida e santa – até ser considerada pelo Papa Francisco “apóstola dos apóstolos”. Sua importância cresce à luz do feminismo atual.

Maria Madalena nunca foi prostituta. Esse título surgiu no século VI durante um sermão do papa Gregório Magno ao tentar convencer os fiéis que o arrependimento era condição para a remissão dos pecados, como teria acontecido com ela. Nascia ali uma lenda que percorreu a história. Mais de mil anos depois, essa imagem permanece – embora rivalize com outras versões sobre quem foi Madalena. Esposa de Jesus? Essa hipótese está em um evangelho não reconhecido pela Igreja Católica que afirma ter havido ao menos um beijo entre eles. Nem o documento é validado nem deixa claro se houve relacionamento amoroso. Quem de fato ela foi: discípula de Cristo, uma das pessoas que proviam seu sustento, santa e, desde 2016, considerada pelo papa Francisco como “apóstola dos apóstolos”. Sua verdadeira história se perdeu em uma miscelânea de representações que ao longo do tempo misturaram cânones, teorias da conspiração e charlatanismo, dependendo do interesse de cada um e de sua época. À luz do movimento feminista contemporâneo, revisitar a personagem significa tirar dela as alcunhas equivocadas, mostrar sua importância histórica e religiosa e falar de machismo e do papel da mulher na Igreja.

É a essa tarefa que se propõem duas novas obras, um livro e um filme, cujos títulos levam seu nome e que serão lançados na quinta-feira 15. “A imagem dela como uma prostituta arrependida é uma criação deliberada da Igreja, feita para minimizar o poder e o mistério que ela ganhou através de seu relacionamento espiritualmente íntimo com Jesus. Sua comunhão direta com o divino ameaçou a estrutura apostólica”, afirma o historiador britânico Michael Haag, autor do novo livro “Maria Madalena – Da Bíblia ao Código Da Vinci: companheira de Jesus, deusa, prostituta, ícone feminista” (ed. Zahar).

Pecadora arrependida

Chamada de Madalena por ser da região de Magdala, na Galileia, norte de Israel, seu nome é citado pela primeira vez na Bíblia no capítulo oito do evangelho de Lucas. A lenda da prostituta começa aí. “De quem haviam saído sete demônios”, diz o texto, referindo-se a ela. Segundo a biblista Zenilda Luzia Petry, não se sabe ao certo o que essa passagem significa, mas o número sete é simbólico. “Representa totalidade. Talvez essa mulher fosse uma pessoa muito sofrida, possuía a totalidade de males. Recuperou-se e se libertou de seus demônios no encontro com Jesus”, diz. Para a pesquisadora Wilma Steagall De Tommaso, da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (Soter) e autora de um livro no prelo sobre a personagem, é uma metáfora para o que ela chama de metanoia, uma transformação espiritual. “Ela vivia uma busca por sentido em sua vida. É como se Jesus tivesse se sentido compreendido.” Porém, a palavra “demônios” e a proximidade do trecho com outro do capítulo anterior, em que se fala de “uma mulher da cidade, uma pecadora” – uma prostituta –, deu brecha à interpretação feita pelos próprios católicos de que ambas eram a mesma pessoa.

A confusão foi institucionalizada no ano de 591, quando o Papa Gregório Magno afirmou que a pecadora é Madalena. Também disse ser ela outra Maria, irmã de Lázaro, o que não é comprovado. Wilma De Tommaso defende o papa Gregório: “Era uma época em que as pessoas tinham muito medo do inferno e se martirizavam. Por misericórdia, ele falou que ela pecou muito, mas foi perdoada, para dar o exemplo”, afirma. “A imagem da prostitua arrependida foi sendo historicamente construída a partir dessa homilia”, afirma André Chevitarese, especialista em história da religião e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Com o tempo, ganhou contornos de verdade. É como se a pessoa acreditasse haver na Bíblia dados que nunca estiveram lá.” Para a pesquisadora Juliana Cavalcanti, também da UFRJ, que estuda as mulheres no catolicismo, ao reduzir Madalena à figura de prostituta, a Igreja acabou também colocando outras protagonistas femininas para “debaixo do tapete”, pois ela era uma peça chave que simboliza um conjunto de grandes personagens ocupando o papel de apóstolas. Elas, inclusive, bancavam as viagens de Jesus, segundo a Bíblia. “A insistência nessa história encerra também toda a possibilidade de mulheres ocuparem cargos dentro da Igreja.”

“Ela é vista como uma vítima da Igreja. Mas acho que ela foi mais vítima por causa da sua intimidade espiritual com Jesus” Michael Haag, autor de “Maria Madalena”

A história de Madalena se embolou ainda mais porque, com o tempo, a associação foi feita também com a mulher prestes a ser apedrejada por ter cometido adultério, outra anônima. Já no século XXI, o autor Dan Brown, com seu livro “O Código Da Vinci”, popularizou a lenda de que ela foi esposa de Jesus (confira no quadro ao lado), em um raciocínio falacioso que se vale de interpretações insustentáveis de antigos manuscritos não-oficiais. O livro recém-lançado se propõe a trazer essas perspectivas, enquanto o filme, com uma pegada de “blockbuster” gospel, tenta abordar a única leitura oficial sobre ela que pode ser feita: a de uma discípula fiel a Jesus. Na obra cinematográfica, ao abrir mão de se casar com um homem escolhido pelo pai e pelo irmão, ela desafia a estrutura patriarcal, que não permitia a uma mulher decidir o próprio destino, e se torna seguidora de um profeta que fala sobre amor e compaixão. Em um momento do mundo que se fala tanto sobre feminismo, a leitura pende para esse lado. Mas especialistas concordam que é impossível chamá-la de feminista. “Esse filtro de leitura não existia naquela sociedade do século I. Vai surgir do XVIII em diante”, afirma Juliana Cavalcanti, da UFRJ. “É anacrônico dar esse título a ela”, afirma a teóloga feminista Ivone Gebara. O autor Michael Haag aborda essa visão atual e concorda com as especialistas. “Ela é vista como uma vítima da Igreja. Mas acho que ela foi vítima mais por causa da sua intimidade espiritual com Jesus, entrando em desacordo com a hierarquia do cristianismo institucionalizado, que nada tem a ver com os ensinamentos de Cristo.”

Wilma De Tommaso lembra que Madalena foi considerada santa desde a Igreja primitiva, tamanha a importância dada pelo próprio catolicismo, que dedica a ela o dia 22 de julho. Na época em que viveu, contudo, a voz de uma mulher não valia como a de um homem. “Se ela visse um crime, por exemplo, sua palavra não tinha valor algum. Era uma regra cultural”, afirma. Daí vêm algumas especulações sobre o porquê seu papel ter sido historicamente renegado e sua visão da história não ter sido difundida. Ela é uma das personagens fundamentais do cristianismo, pois foi quem viu Jesus ressuscitado. Historiadores avaliam, inclusive, a possibilidade de considerá-la uma apóstola. “O critério de apostolicidade passa a ser ter visto Cristo ressuscitado. Se ela o viu, e foi a primeira, por que não considerá-la como tal?”, afirma o professor André Chevitarese. Durante a divulgação do filme, a atriz Rooney Mara, que interpreta a protagonista no filme “Maria Madalena”, diz ter ficado indignada com o rumo que o reconhecimento à personagem tomou. “Ela foi uma parte intrínseca da história, mas foi relegada ao papel de prostituta enquanto Pedro, que negou Jesus três vezes e distorceu sua mensagem, tem Igrejas no mundo todo. Ela é uma prostituta, e ele é um santo. É simplesmente incrível.”

Mensagens ocultas

Quem leu “O Código Da Vinci” ou assistiu à adaptação para os cinemas provavelmente lembra de uma das principais teorias apresentadas na história: de que o artista italiano teria retratado Maria Madalena em sua interpretação da Santa Ceia, do lado direito de Jesus. Dan Brown, autor do livro, recebeu muitas críticas na época, mas ele não criou essa teoria sozinho. O que ele fez foi popularizar uma hipótese que circulava há algum tempo. Ela aparece em “O Segredo dos Templários”, livro de Lynn Picknett e Clive Prince lançado em 1997. Segundo a dupla, Leonardo Da Vinci deixou pistas sobre o relacionamento entre Maria Madalena e Jesus no quadro, das cores de roupa à posição dos dois à mesa, remetendo a um “M” de Madalena. Para sustentar a tese, os autores se baseiam em evangelhos apócrifos, especialmente os escritos por Filipe e Maria. A hipótese, no entanto, é contestada por historiadores da arte. A versão mais aceita diz que é João o apóstolo retratado ao lado de Jesus na Santa Ceia – e que ele havia sido pintado com feições femininas em outras obras de arte.

 

COMPANHEIRA Da Vinci teria retratado Madalena ao lado de Cristo, em uma posição que forma um “M”. A teoria é contestada por historiadores da arte

Seguidora fiel

É em grande parte pela representação artística de Maria Madalena que a alcunha de prostituta foi disseminada. “Só conheço dois longas que saem disso, um grego e um mexicano, pouco conhecidos”, afirma a pesquisadora Juliana Cavalcanti, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O novo “Maria Madalena”, nos cinemas na quinta-feira 15, quebra o padrão. Mostra-a como uma discípula íntima, não no sentido romântico. É uma fiel escudeira, seguindo à risca os ensinamentos e batendo de frente com apóstolos. O filme retoma pregações com certo didatismo. Ainda assim, em tempos de intolerância e ódio, é uma obra necessária. A protagonista é vivida por Rooney Mara e, no papel de Jesus, Joaquin Phoenix encarna um profeta perturbado pela falta de amor entre as pessoas.

Linhagem nobre

Um sucesso de vendas desde que chegou às livrarias em 1982, “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada”, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, popularizou uma outra hipótese. Segundo os autores, Jesus e Maria Madalena foram casados e tiveram um ou mais filhos. Estes, ou seus descendentes, viajaram ao sul da França e casaram com famílias nobres. Essa linhagem daria origem à Dinastia Merovíngia, cujo primeiro representante foi Meroveu. Para o trio, o Santo Graal era, ao mesmo tempo, o útero de Maria Madalena e a Linhagem de Cristo. A teoria foi considerada blasfêmia e a pesquisa do livro é contestada pela falta de provas capazes de conectar com um mínimo de precisão os merovíngios a Jesus. 

André Sollitto Revista Isto É